
O povoamento da Austrália é bastante antigo e os especialistas ainda divergem sobre as datas. A corrente mais tradicional fala que a chegada dos primeiros aborígenes ao continente se deu a cerca de 70 mil anos. Novas linhas de pesquisa trabalham com uma data mais recente, entre 40 e 42 mil anos. Existem alguns poucos cientistas que acreditam que essa história deveria retroagir para cerca de 120 mil anos.
Há um consenso entre a maioria dos cientistas em se afirmar que esses povoadores primitivos pertenceram a uma das primeiras correntes migratórias de Homo Sapiens, a nossa espécie, a sair da África em busca de novas oportunidades de vida. Essas pessoas seguiram através de franjas florestais ao longo das margens do Oceano Índico até atingirem o Sudeste Asiático. Navegando de ilha em ilha, essas populações chegaram na Austrália.
Quando os primeiros navegadores europeus atingiram o continente australiano ainda no século XVI, encontraram uma enorme população nativa ali estabelecida há milhares de anos. Estimativas da época do início da colonização europeia falam de uma população entre 318 mil e 1 milhão de aborígenes, falantes de cerca de 300 línguas e 600 dialetos, e divididos em inúmeros grupos tribais.
Como se viu em outros projetos de colonização aqui nas Américas, na África e mesmo no Sul e Sudeste Asiático, os recém chegados impuseram aos nativos suas crenças e seus valores. Tudo o que fazia parte da cultura aborígene foi relegado a um plano muito secundário, sendo que muito cultos religiosos passaram a ser proibidos.
Uma das tradições multimilenárias dos aborígenes que foi proibida logo no início da colonização inglesa foram as “queimadas culturais“. Os nativos se valiam do fogo para limpar o excesso de matéria combustível em suas matas tais como gravetos, restos de folhas, troncos caídos entre outros. Essas queimadas controladas faziam parte de todo um contexto cerimonial e religioso.
Segundo as crenças dos aborígenes, a “mata precisa queimar” para preservar a sua saúde. Essa máxima foi recuperada pela pesquisadora Shannon Foster, professora de cultura aborígene da Universidade de Tecnologia de Sydney. Ela se tornou uma guardiã dos conhecimentos do povo d`harawal. Sem contar com escrita, esses conhecimentos tradicionais são passados por via oral de uma geração para outra. A interessante foto que ilustra essa postagem mostra o bisavó e o avó da pesquisadora tomando “lições” com aborígenes na década de 1940.
De acordo com a pesquisadora, a preservação da terra é a parte central da cultura dos aborígenes australianos. Na crença desses povos, é fundamental se pensar no que se pode fazer para retribuir à terra tudo o que ela nos dá. E foi na base da experimentação que esses povos descobriram que as queimadas controladas eram uma ferramenta eficiente para se evitar a ocorrência de grandes incêndios florestais.
Os nativos ensinam que essas queimadas seguem o ritmo da natureza e ajudam a atrair os animais que esses povos caçam. As cinzas fertilizam os solos e o potássio liberado é essencial para a floração das plantas. Isso melhora o mosaico da vegetação, além de gerar microclimas.
Os aborígenes acreditam, o que conta inclusive com o aval de alguns pesquisadores, que essas queimadas suaves incentivam as chuvas. A atmosfera aquece até um nível atmosférico onde o calor e o frio provocam a condensação da água, formando assim as chuvas.
Esse tipo de queimada realizada pelos antigos aborígenes é o que os especialistas chamam de “queimadas frias” (cool burning em inglês). Trata-se de um fogo extremamente controlado com chamas que atingem, no máximo, a altura dos joelhos. A técnica foi criada com o objetivo de queimar as áreas de forma contínua e acompanhando a paisagem.
É interessante notar que essa antiga prática, abolida pelos colonizadores ainda no final do século XVII, está em perfeita sintonia com uma resolução recente do Governo dos Estados Unidos – a Estratégia de Crise de Incêndios Florestais, conjunto de medidas que prevê tornar as florestas do país mais saudáveis e resistentes a esses eventos ao longo dos próximos 10 anos.
Um dos mais importantes itens da resolução são os trabalhos de poda da vegetação e corte de árvores mortas, materiais que deverão ser queimados de forma controlada pelas autoridades florestais do país. A ideia é exatamente a mesma das antigas práticas aborígenes – reduzir a quantidade de material combustível nas florestas para evitar a ocorrência de grandes incêndios florestais.
Os aborígenes australianos não estão sozinhos nisso – a prática da “ecologia do fogo” vem fazendo parte da história de inúmeros povos tradicionais em todo o mundo. Aqui nas Américas, por exemplo, há registros históricos e geológicos de grandes queimadas realizadas por povos indígenas – do Alasca, ao Norte, até a Terra do Fogo, ao Sul do continente. Essas queimadas eram sistemáticas e tinham como objetivo a abertura de campos agrícolas e criação de áreas para caça de animais silvestres.
Existem abundantes testemunhos de pioneiros da colonização dos Estados Unidos que falam de grandes incêndios florestais provocados propositalmente pelos indígenas do Nordeste norte-americano no início do século XVII. Segundo o que essas testemunhas apuraram diretamente com os índios, a queima da floresta era fundamental para dar espaço aos grandes rebanhos de animais que os nativos caçavam, além de liberar áreas para a agricultura.
Aqui na Amazônia brasileira encontramos as chamadas “terras pretas de índio”, solos que foram fertilizados artificialmente pelos indígenas para fins agrícolas a centenas, quiçá milhares de anos. A maior parte das terras amazônicas, conforme já apresentamos em postagens aqui no blog, são de baixíssima fertilidade – os indígenas desenvolveram técnicas de queimar restos de vegetação de forma controlada para adubar os solos. Isso criou uma grossa camada de terra preta e de excepcional fertilidade, ainda hoje utilizadas por indígenas e caboclos para a formação de seus roçados.
Ainda falando dos nossos indígenas não podemos deixar de falar da coivara, uma técnica de plantio agrícola que os colonizadores europeus acabaram absorvendo. A mata é derrubada e os restos florestais são deixados a secar por algumas semanas, quando então o material é incendiado. Além de limpar os solos, as cinzas resultantes da queima fertilizam a área para uso em uma ou duas colheitas.
Com a Austrália sofrendo sistematicamente com grandes incêndios florestais nas últimas décadas, existem muitos grupos que estão defendendo um retorno a essas antigas práticas culturais e religiosas dos antigos aborígenes. O que durante muito tempo foi considerado paganismo e culto ao demônio pelos antigos líderes religiosos agora está sendo visto como um canal de ligação com a natureza.
Lembrando que os aborígenes vivem nessas terras há dezenas de milhares de anos e que conseguiram preservar adequadamente o meio ambiente durante esse tempo, não deixa de ser uma ação inteligente buscar absorver alguma coisa de sua cultura ancestral em prol da sofrida natureza da Austrália.