
Bidu Sayão é uma ilustre desconhecida para a maioria de nós, pobres mortais. No mundo da música lírica internacional, entretanto, ela teve seu nome eternizado no Olimpo das grandes divas da ópera. Pequena na estatura, mas grandiosa na sua capacidade vocal, Balduína de Oliveira Sayão, mais conhecida como Bidu Sayão, brilhou nos palcos dos grandes teatros da Europa e dos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 1950.
Citando uma única passagem de sua vida já é possível entender a grandeza do seu nome: após uma antológica apresentação em fevereiro de 1938 na Casa Branca, sede do Governo dos Estados Unidos, o Presidente Franklin Roosevelt ofereceu a cidadania americana à interprete; “no Brasil eu nasci e no Brasil morrerei” respondeu Bidu. Infelizmente, morreu de pneumonia em 1999, pouco antes de completar 94 anos, sem realizar o seu desejo de rever a Baía de Guanabara e a sua cidade natal: Itaboraí (RJ).
Uma pequena rua no bairro Aponiã, na cidade de Porto em Rondônia, foi batizada com o nome da cantora e foi assim que Bidu Sayão entrou em minha vida. Em 2009, quando eu trabalhei nas obras de implantação da rede de esgotos da cidade, essa foi uma das ruas recebeu as tubulações do sistema de esgotos – porém, o que seria um grande benefício se transformou em um problema gigantesco.
No dia seguinte após a finalização dos nossos trabalhos, caiu uma forte chuva na cidade e a rua Bidu Sayão se transformou num verdadeiro lago, com quase meio metro de profundidade na parte central. É claro que a população colocou a culpa no nosso trabalho e, bem por acaso, eu fui um dos responsáveis por desatar o grande nó.
Sem achar qualquer motivo para o acúmulo de tamanha quantidade de água na rua em razão da nossa obra, solicitei ao pessoal de nossa topografia uma medição do nível da rua. E o que descobrimos – a parte central da rua ficava num nível 25 cm abaixo dos extremos e não havia como a água da chuva escoar. O problema já era antigo e os nossos trabalhos naquela rua só agravaram a situação.
Comecei a postagem relembrando esse velho problema, que ao fim e ao cabo resolvemos fazendo um rebaixamento do nível em um dos extremos da rua, para falar que muitos dos problemas de alagamentos em ruas e avenidas das cidades começam por causa de falhas desse tipo – as características do relevo dos solos não são respeitadas e as águas pluviais, que correm por força da gravidade, não conseguem escorrer na direção de canais de drenagem como riachos, rios e até mesmo as tubulações da rede de drenagem de águas pluviais.
A área da engenharia que cuida de assuntos ligados à topografia e dados geográficos relativos à medição de terrenos é a agrimensura. Essa ciência surgiu no antigo Egito, onde as cheias anuais do rio Nilo encobriam as demarcações dos terrenos. Sempre que as águas baixavam, o faraó mandava sábios de sua confiança para refazer as marcações de limites entre as propriedades e assim evitar conflitos entre os proprietários das terras.
Os agrimensores também eram profissionais fundamentais no gerenciamento das grandes obras de engenharia. Usando os grandes conhecimentos de geometria já existentes naquela época, eles orientavam os trabalhadores na colocação dos grandes blocos de pedra usados na construção das pirâmides e templos do antigo Egito.
Os gregos foram um dos primeiros povos estrangeiros a tomar emprestado dos egípcios todos esses conhecimentos da agrimensura e os usar de maneira magistral na construção de seus templos, palácios, estádios e praças. Para a construção de suas cidades, os gregos aperfeiçoaram também outras duas ciências – a arquitetura e o urbanismo.
Além das preocupações fundamentais dos gregos com a beleza, a funcionalidade e o conforto das suas cidades, essas ciências também tinham de resolver alguns problemas usuais do dia a dia como o abastecimento de água, o descarte de esgotos, o calçamento das ruas, a drenagem de águas pluviais, entre muitos outros.
Observem que estamos falando aqui de eventos que aconteceram há mais de 2.500 anos atrás e de conhecimentos que vem sendo transmitidos de geração em geração. Quantos povos não tomaram para si esses conhecimentos técnicos e os usaram em seu próprio benefício na construção de suas cidades?
Quando encontramos situações de ruas como a Bidu Sayão lá de Porto Velho e de muitas outras vias em cidades por todo o Brasil, percebemos que houve alguma “pane” no uso desses conhecimentos ancestrais. O que poderá ter acontecido com os profissionais que fizeram a demarcação desses logradouros e que não respeitaram uma das mais elementares regras da topografia (que é uma das áreas da agrimensura) – o cuidado com a drenagem das águas pluviais?
Os sistemas de drenagem de águas pluviais são responsabilidade das prefeituras das cidades. Eles começam com um bom projeto de urbanização, onde o traçado das ruas, avenidas e demais logradouros considera as condições ideais para o rápido escoamento das águas de chuva, que correm por ação da força da gravidade, ou seja, a água corre de um ponto mais alto para um ponto mais baixo – sempre. Esses trabalhos precisam ser orientados por um agrimensor ou um bom topografo.
Essa preocupação deve começar nas operações de terraplanagem e corte das vias, que devem ser executadas de maneira que o leito da via ficará num nível abaixo do nível das calçadas, que por sua vez ficará num nível abaixo do nível dos terrenos; os imóveis devem ser construídos num nível mais alto que o nível dos terrenos. As ruas receberão as guias, também chamadas de meio fio, e sarjetas que, na forma de uma calha, terão a função de escoar as águas pluviais na direção das tubulações da drenagem pluvial ou para canais naturais como córregos, riachos e rios. Esse trabalho se encerra com a construção do piso das calçadas e com a pavimentação do leito das vias.
Eu costumo atribuir o “esquecimento” dessas técnicas ancestrais de construção ao acelerado processo de urbanização que nossas cidades viveram ao longo de todo o século XX. Com a industrialização, milhões de pessoas largaram a vida no campo e migraram para as cidades, que cresceram abruptamente e sem maiores planejamentos. Esses novos contingentes populacionais precisavam de habitações.
Surgiram muitos dos chamados loteamentos populares, que vendiam terrenos baratos e parcelados em muitas e muitas prestações. Acho que foi justamente aqui que muitas prefeituras pecaram ao não supervisionar corretamente o particionamento dos lotes e a abertura das ruas. Em muitos dos casos, como o da rua Bidu Sayão, quem fez os serviços de topografia nitidamente não sabia muito bem o que estava fazendo.
Muitos dos dramas associados a enchentes e alagamentos que vemos nas cidades durante os períodos de chuvas surgiram a partir desses erros fundamentais na abertura das ruas. E para corrigir esses problemas serão necessários gastos enormes em novas obras de infraestrutura. A pior parte é que as cidades não tem recursos financeiros para tocar essas obras.
E assim, os problemas vão se arrastando ano após ano, verão após verão…