
Na postagem anterior falamos brevemente do Programa Águas Brasileiras, uma iniciativa que envolve vários Ministérios do Governo Federal, Estados, municípios e também empresas da iniciativa privada. A principal meta é a “ampliação da quantidade e a qualidade da água disponível para consumo e para o setor produtivo, de forma a fomentar o desenvolvimento regional e garantir mais qualidade de vida para a população”.
A degradação de muitas bacias hidrográficas brasileiras já atingiu um nível crítico e alguma coisa precisava ser feita. Um exemplo que foi citado é a do rio São Francisco, o nosso Velho Chico. Apesar de não formar a maior bacia hidrográfica do Brasil, o São Francisco atravessa grandes extensões do Semiárido Nordestino, a região com a menor disponibilidade de água no país.
Apesar de muito elogiável, essa iniciativa, a meu ver, é muito tímida para o tamanho do problema. Faço votos que os projetos cresçam cada vez mais e que volumes cada vez maiores de recursos financeiros cheguem ao seu destino final e que se transformem em matas recuperadas.
A recuperação ambiental de bacias hidrográficas, felizmente, não depende exclusivamente de grandes projetos e vultosos orçamentos públicos. Em minha carreira profissional em empresas do ramo da construção civil, trabalhei em grandes projetos de saneamento ambiental – desgraçadamente, pude acompanhar (de longe) inúmeras situações irregulares de desvio de recursos públicos.
Pequenas iniciativas levadas a cabo por cidadãos comuns também podem atingir resultados esplendidos. Vou citar o caso da Fazenda Bulcão, na cidade de Aimorés no Leste de Minas Gerais. O dono dessa fazenda é ninguém menos que Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos do mundo. Há um bom tempo atrás publiquei uma postagem sobre Serra Pelada e a foto antológica que usei para ilustrar o texto é de autoria de Salgado.
O município de Aimorés fica as margens do rio Doce, exatamente na divisa entre os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Muito antes da grande tragédia ambiental provocada pelo rompimento da barragem de rejeito da mineração se romper e destruir o rio Doce, Aimorés já acumulava um enorme passivo ambiental.
Originalmente, toda a faixa Leste de Minas Gerais era coberta por uma densa floresta, a Mata Atlântica. Aliás, essa região é conhecida com Zona da Mata. O território onde se encontra hoje o Estado de Minas Gerais tinha perto de 47% de sua superfície coberta com vegetação de Mata Atlântica, o equivale a mais de 282 mil km² de matas do bioma. Em pouco mais de três séculos e depois de vários ciclos econômicos, a Mata Atlântica hoje está restrita a 10,2% da superfície do território mineiro, ocupando pouco mais de 50 mil km².
Sebastião Salgado nasceu na Fazenda Bulcão e lá viveu até os 15 anos de idade. A propriedade de seus tempos de infância tinha uma área de 709 hectares e contava com metade de sua superfície coberta por matas. Enquanto esteve morando em outras cidades e países, a cobertura vegetal da fazenda foi sendo gradativamente reduzida até atingir a triste marca de apenas 0,5% de matas no final da década de 1990.
Em 1988, Salgado e sua esposa, Leila Warnick, decidiram morar na Fazenda Bulcão. Sebastião Salgado havia feito um grande trabalho de cobertura fotográfica da crise humanitária em Ruanda pouco tempo antes, onde pode testemunhar as sangrentas lutas que levaram perto de 800 mil pessoas a morte. Doente e traumatizado pela experiência, ele buscava um refúgio mais tranquilo para viver e se recuperar.
Além da destruição da fauna e da flora, a enorme degradação ambiental que havia se abatido sobre a antiga fazenda destruiu inúmeras nascentes que brotavam das encostas dos morros e que garantiam o abastecimento da propriedade. Foi então que Salgado decidiu recuperar a antiga cobertura vegetal da propriedade e, ainda em 1998, ele e a esposa criaram o Instituto Terra.
Uma das primeiras providencias foi a de transformar a Fazenda Bulcão em uma RPPN – Reservas Particular do Patrimônio Natural, um procedimento que possibilita a isenção do ITR – Imposto Territorial Rural, e garante a propriedade da terra. Porém, existe o compromisso de os proprietários realizarem a recuperação ambiental da propriedade.
O começo dos trabalhos de recuperação da antiga mata nativa não foi nada fácil – Sebastião Salgado comentou em entrevistas que todas as mudas que foram doadas pela empresa Vale do Rio Doce e que foram plantadas na fazenda morreram. No segundo ano de reflorestamento, as coisas melhoram um pouco – 20% das mudas sobreviveram. No terceiro ano, as mudas que vingaram representavam metade de tudo o que foi plantado.
A persistência de Sebastião Salgado e de sua equipe ao longo de mais de 20 anos trouxe ótimos resultados – a Fazenda Bulcão hoje está totalmente reflorestada, com cerca de 2 milhões de árvores nativas da Mata Atlântica. Esse é o maior projeto de recuperação da Mata Atlântica em uma área contínua em todo o país.
De acordo com os estudos feitos pela equipe do Instituto Terra, a floresta da Fazenda Bulcão abriga 172 espécies de aves, sendo que 6 dessas estão ameaçadas de extinção; 33 espécies de mamíferos, sendo que 2 delas estão em risco de extinção no mundo e 3 em risco no Brasil. Também entram nessa lista 15 espécies de anfíbios e outras 15 de répteis. A fazenda é destaque como habitat de espécies que estão no topo da cadeia alimentar como as jaguatiricas.
Além da restauração da fauna e da flora, todo esse trabalho de recuperação ambiental fez diversas nascentes de água voltarem a vida. Conforme já comentamos em postagens anteriores, a presença da vegetação é fundamental para a infiltração da água das chuvas nos solos, o que recarrega lençóis subterrâneos de água e aquíferos. Com os “tanques cheios”, a terra faz a água brotar dos solos em abundancia – simples assim.
Ao longo de mais de 20 anos, o Instituo Terra já produziu mais de 4,5 milhões de mudas de espécies da Mata Atlântica, além de manter um laboratório de sementes que reúne informações sobre todos os processos de produção de mudas florestais. O Instituto já desenvolveu mais de 700 projetos educacionais que atingiram um público de mais de 70 mil pessoas.
A bacia hidrográfica do rio Doce abrange uma área total de 86 mil km² nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, englobando 250 municípios e onde vivem 3,5 milhões de pessoas. Cerca de 98% desse território fica dentro dos antigos domínios da Mata Atlântica. Com a devastação da maior parte da floresta, os caudais dos rios da bacia hidrográfica caíram drasticamente.
De acordo com estudos científicos, a bacia hidrográfica do rio Doce possui aproximadamente 375 mil nascentes – segundo o Instituto Terra, pelo menos 350 mil dessas nascentes precisam de trabalhos de recuperação da cobertura florestal para continuar a produção de água. Isso é uma tarefa hercúlea.
Que o maravilhoso exemplo de Sebastião Salgado e Leila Warnick possam ser seguidos por muito mais gente e que ótimos exemplo de recuperação ambiental como o da Fazenda Bulcão sejam replicados por todos os cantos.
[…] A RECUPERACÃO AMBIENTAL DA FAZENDA BULCÃO EM AIMORÉS, MINAS GERAIS – UM ESTUDO DE CASO […]
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