O AÇÚCAR, O ESCRAVO E O BOI

O escravo e o boi

Nesta série de postagens estamos falando do processo contínuo de destruição do trecho Nordestino da Mata Atlântica, uma densa floresta que cobria todo o trecho litorâneo da costa brasileira entre o Rio Grande do Sul e o Rio Grande do Norte. Em muitas regiões, a floresta avançava pelo interior do nosso território, chegando até o Leste do Paraguai e Nordeste da Argentina. Aos tempos da chegada da esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral em 1500, a Mata Atlântica cobria cerca de 1,2 milhão de km² ou cerca de 15% do atual território brasileiro

As estimativas atuais falam que algo entre 90% e 93% da Mata Atlântica já foi devastado por atividades humanas, o que coloca o bioma como o mais ameaçado do Brasil. O trecho Nordestino da Mata Atlântica foi o primeiro a desaparecer do “mapa”, principalmente pela intensa atividade da indústria do açúcar ao longo dos três primeiros séculos de nossa colonização

O trecho do litoral do Nordeste onde se desenvolveram as atividades açucareiras se estendia entre o Sul do Estado da Bahia e o Rio Grande do Norte, ocupando cerca de 1.500 km de costa. De acordo com as informações históricas, a largura da Mata Atlântica na região variava entre 60 e 80 km. Fazendo os devidos cálculos, chegaremos a uma área total ocupada pela cultura entre 90 mil e 120 mil km². Essa área corresponde a aproximadamente 10% da antiga área da Mata Atlântica no país

Destruir um trecho de matas densas com uma área superior à de todo o Estado de Santa Catarina não é uma tarefa das mais fáceis. O esforço se torna muito mais hercúleo quando lembramos que há época não existiam motosserras portáteis e grandes tratores que derrubam largas faixas de matas puxando pesadas correntes. O insano trabalho foi feito com o uso de machados, com a força da tração animal e, principalmente, usando o fogo. Aqui precisamos destacar dois personagens essenciais para se levar a cabo essa tarefa – os escravos trazidos desde a África e os bois

A relação do homem com o boi é milenar. Pinturas pré-históricas que encontramos em cavernas da Europa, Ásia e África mostram seres humanos caçando espécies selvagens, ancestrais dos bois atuais. Domesticado ao longo dos milênios, o boi assumiu um papel de destaque entre inúmeras civilizações como estoque e fonte de alimento, como força para o trabalho e transporte e também como um elemento místico da natureza, com inúmeras representações na mitologia, cultura e no imaginário popular. Cito um exemplo – o minotauro grego.

O gado vacum, que vamos chamar simplesmente de boi, chegou junto com os primeiros colonizadores portugueses. É bem provável que na própria expedição de Pedro Álvares Cabral já existisse algum espécime – se não vivo nos porões como reserva de carne para momentos difíceis da viagem, devidamente transformado em carne bovina salgada, alimento ideal para as longas travessias oceânicas de outrora. 

Com certeza, na implantação dos primeiros assentamentos nos primórdios da colonização, manadas de bois eram parte importante da carga das caravelas. Além de fonte principal de proteínas para os primeiros colonizadores, a força do boi era fundamental para a derrubada da mata e transporte das pesadas toras de madeira para as construções e fornos dos engenhos, para o preparo do solo e a plantação dos canaviais, para o transporte das canas, para acionar as moendas e enfim, para transportar o precioso açúcar rumo aos portos de embarque. 

Informações de meados do século XVII dão conta que para o funcionamento de um engenho de cana eram necessários, no mínimo, sessenta escravos e sessenta bois, distribuídos em todos os tipos de tarefas e processos da produção. Gilberto Freyre nos deixou uma pista da triste serventia final dos pobres bois:

Quando velho ou desvalorizado por algum acidente, (o boi) servia para beef“.

Além da força bruta dos bois, o projeto colonial português precisava de braços e pernas fortes para enfrentar as matas, dominar a terra e gestar a produção do valioso açúcar, desde a preparação dos solos e plantio das canas até o refino das “caldas melosas” para a obtenção do mais puro produto. A primeira opção tentada pelos colonizadores foi a de se usar a mão de obra dos indígenas, uma escolha que não logrou maiores êxitos. 

Caçadores, pescadores e coletores de frutos e outros produtos na natureza, e também praticantes de uma agricultura de subsistência, principalmente voltada a produção de mandioca, milho e de algumas variedades locais de arroz, os indígenas não tinham uma estrutura física adequada aos pesados trabalhos envolvidos na produção do açúcar. A cultura indígena também funcionava como um forte bloqueio para se exercer tais atividades – nas tribos, a agricultura era uma tarefa das mulheres. Começou assim a importação de trabalhadores africanos para suprir as necessidades de mão de obra da colônia. 

A escravidão humana, que se estendeu ao longo de muitos milênios na Europa, havia entrando em forte decadência após o final do Império Romano e se acelerou ainda mais com a expansão do cristianismo. A partir do século XII, com o fortalecimento dos reinos cristãos na Península Ibérica, teve início o processo de expulsão dos muçulmanos, que haviam ocupado o Sul da região no século VIII. Muitos desses muçulmanos acabavam sendo aprisionados por cavaleiros cristãos e transformados em escravos e semiescravos, criando assim um processo de renascimento da escravidão humana no continente Europeu. 

Desde o século XV, há relatos da presença de escravos africanos em territórios portugueses. Calcula-se que existiam 50.000 escravos em Portugal há época dos primeiros descobrimentos nas Américas. De compleição física robusta, plenamente adaptada às necessidades para os trabalhos na agricultura, os negros africanos também se enquadravam na categoria de infiéis, sendo portando passíveis de dominação e escravização pelos brancos. 

A captura e o tráfico negreiro tornaram-se excelentes negócios para os novos empreendedores, com farta disponibilidade no continente africano e mercado certo nas colônias das Américas. Relatos de época costumam indicar que havia um alto índice de mortalidade de escravos africanos, principalmente devido às péssimas condições de higiene dos porões dos navios negreiros – há quem tenha dito que se sabia da chegada destes navios aos portos pelo cheiro de ‘inhaca do sujo’ que se sentia a grandes distâncias. Algumas fontes chegam a citar uma “perda” entre 40 e 50% das cargas de negros durante a travessia do Oceano Atlântico – o alto valor de comercialização compensava plenamente este custo extra. Um negócio de altíssima rentabilidade e riscos baixos. 

Apesar de repugnante nos dias atuais, a implantação da mão de obra negra no Brasil deu um verdadeiro impulso econômico para a Colônia. A presença negra foi determinante para a formação cultural do povo brasileiro. O negro incorporou sua ginga, sua música, seus mitos, sua comida e ingredientes, além de sua alegria na cultura e na alma brasileira. 

Diferentemente do que muitos imaginam, não foram os bandeirantes paulistas os disseminadores da língua portuguesa em todo o Brasil – essa nobre missão coube aos negros africanos. Comprados na faixa litorânea e conhecedores da língua e dos valores sócio culturais dos lusos, os escravos foram levados para os sertões do Brasil e lá difundiram a língua portuguesa. Muitos desses escravos tinham um ótimo padrão cultural, não sendo raro encontrar grupos norte africanos, conhecidos como ladinos, que inclusive sabiam ler e escrever em árabe, muito diferente dos senhores analfabetos e ignorantes que os compravam. 

Juntos, escravos e bois gastaram seus melhores dias realizando os trabalhos mais penosos e degradantes da indústria açucareira no Brasil colonial. A triste história do negro por aqui talvez não tenha sido mais triste do que foi porque aqui ele encontrou um grande parceiro de lida e de sofrimento: o boi. Encerro com essa citação do grande antropólogo Darcy Ribeiro: 

O escravo vindo da África não encontrou aqui melhor companheiro do que o boi para seus dias mais tristes. Para os seus trabalhos mais penosos. Quando depois o boi associou-se também aos dias alegres do negro do engenho – os de dança, de cachaça, de festa – na figura do bumba-meu-boi, é natural que o negro tenha feito desse drama popular um meio de expressão de muita mágoa recalcada: a glorificação do boi, seu companheiro de trabalho, quase seu irmão.” 

Continuamos na próxima postagem.

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