Na noite da última segunda-feira, dia 24 de fevereiro, o navio cargueiro Stellar Banner, de bandeira sul coreana, encalhou a 100 km da costa do Maranhão. O navio havia acabado de deixar o Terminal Marítimo de Ponta da Madeira, em São Luís, carregado com 280 mil toneladas de minério de ferro que seriam transportadas para a China.
De acordo com informações preliminares divulgadas pelo comandante da Capitania dos Portos no Maranhão, Alekson Porto, o navio colidiu com algo não identificado, o que causou fissuras no casco da embarcação. Para evitar o naufrágio, o comandante do navio realizou um movimento de varação, que nada mais é do que encalhar o navio em um banco de areia. A Marinha abriu um inquérito para investigar as causas do acidente. No momento, a maior preocupação das autoridades é evitar o desastre ambiental que poderá ocorrer na região caso haja vazamento da carga de minério de ferro ou dos tanques de combustível da embarcação.
A presença de bancos de areia a mais de 100 km da costa do Maranhão, apesar de surpreendente, não é novidade nessa região que se encontra dentro do raio de influência da foz da Bacia Amazônica. O tráfego de navios cargueiros cada vez maiores e com cargas cada vez mais pesadas nessa região é muito preocupante. O risco de acidentes como o que ocorreu com o Stellar Banner tende a ser cada vez mais frequente.
A Bacia Amazônica possui a maior rede hidrográfica do mundo – há época das chuvas, o famoso inverno amazônico, perto de um quarto de toda a água doce do planeta circula nos rios dessa região. Ocupando aproximadamente 7 milhões de km², a Bacia Amazônica possui mais de 1.000 rios tributários – alguns destes rios, como o Negro e o Madeira, entram na lista dos 10 maiores rios do mundo.
A cada segundo, a foz do rio Amazonas despeja até 180 mil metros cúbicos de água no Oceano Atlântico. Esse imenso volume forma uma pluma de água doce com uma espessura com até 25 metros e que se estende num raio de 400 km. Esse imenso volume de águas carreia cerca de 31 toneladas de sedimentos a cada segundo, formando ilhas, como aconteceu com o Arquipélago de Marajó no passado, e inúmeros bancos de areia, como aquele que pode ter sido o responsável pelo acidente com o Stellar Banner.
A navegação fluvial é o principal meio de transporte de pessoas e de cargas na Bacia Amazônica. De acordo com informações da Capitania Fluvial da Amazônia Ocidental (CFAOC), região que abrange os Estados do Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia, mais de 33 mil embarcações estavam cadastradas e em circulação pelos rios da região em 2017. As autoridades não têm ideia da quantidade de embarcações clandestinas que navegam pelos rios da região. A cada ano, cerca de 1.800 novas embarcações são cadastradas apenas no Estado do Amazonas.
Essa imensa “frota fluvial” é responsável pelo transporte de centenas de milhares de pessoas todos os dias; pelo abastecimento das pequenas cidades ribeirinhas com alimentos, produtos de consumo e combustíveis; transporte de estudantes e de doentes, entre outros. Sem existir estradas de rodagem na maior parte da região Amazônica, embarcações de todos os tipos são utilizadas em substituição ao uso de carros, ônibus e caminhões, veículos usados para o transporte em outras regiões do país.
Esse uso intenso de embarcações, muitas das quais em péssimas condições de conservação, sem cadastro nos órgãos oficias e conduzidas por pessoal não habilitado, tem seu preço: 60% das mortes com acidentes em embarcações ocorrem na região Norte do Brasil. Somente nos quatro primeiros meses de 2018, o 9° Distrito Naval da Marinha em Manaus registrou 30 acidentes com embarcações, onde 12 pessoas morreram. Esses números, muito provavelmente, são bem maiores: muitas ocorrências, especialmente nos casos das embarcações clandestinas, não são notificadas. Colisões entre embarcações, choques com troncos de árvores flutuando nas águas, naufrágio devido aos excessos de carga e má conservação das embarcações, incêndios e panes em motores, e, principalmente, em encalhes em bancos de areia, estão entre os acidentes mais comuns.
Conforme já comentamos em diversas postagens anteriores, o clima da Amazônia possui apenas duas estações – o verão, que é quente e seco, e o inverno, que é quente e chuvoso. O nível dos rios de toda a região varia muito ao longo do ano. Cito como exemplo o rio Madeira, que tem variações de nível de até 20 metros entre a época das cheias e a vazante. Conforme os rios vão perdendo água durante a época da vazante, bancos de areia e afloramentos rochosos começam a aparecer ao longo de suas calhas, aumentando muito os riscos de acidentes com embarcações.
Diferente dos grandes cargueiros oceânicos, que são dotados da mais moderna tecnologia de navegação, sistemas de radar e de GPS (e ainda assim se envolvem em acidentes), a navegação pelos rios da Bacia Amazônica é feita, basicamente, através dos olhos e ouvidos dos capitães nativos da região. Certa vez eu ouvi o capitão de uma embarcação que fazia o trajeto Porto Velho-Manaus falando de sua técnica para a navegação noturna – ele se guiava pela diferença entre o brilho da água e o escuro da mata nas margens em suas viagens. Para os troncos flutuantes e bancos de areia, se dependia puramente da sorte durante as noites – mesmo durante a luz do dia, nem sempre se consegue enxergar esses obstáculos submersos nas águas.
Incêndios em embarcações também são assustadoramente frequentes nos rios da Amazônia. Embarcações construídas predominantemente com madeira, dotadas de cozinha e transportando, entre outras, cargas infláveis como gás engarrafado e combustíveis, podem se transformar em um braseiro flutuante em poucos minutos. Outra causa importante de incêndios nas embarcações são as operações de abastecimento. É comum a venda clandestina de gasolina e óleo diesel por embarcações, que funcionam como uma espécie de “postos de gasolina flutuantes”.
Essas transferências de combustíveis de uma embarcação para outra são feitas sem a observância dos requisitos mínimos de segurança, muitas vezes com pessoas fumando, e sem a presença de equipamentos de segurança como extintores de incêndio. Basta um leve descuido para as embarcações arderem em chamas e fazerem inúmeras vítimas.
Na última sexta-feira, dia 29 de fevereiro, um barco com cerca de 60 passageiros naufragou no rio Jari no Amapá. De acordo com as últimas informações, a tragédia deixou pelo menos dois mortos. Segundo o relato preliminar do comandante da embarcação, a causa do naufrágio foi um forte vendaval que adernou o barco. Talvez pelo impacto com o acidente com o navio cargueiro Stellar Banner no Maranhão, essa notícia acabou sendo veiculada em rede nacional. Em condições “normais”, só a população do Amapá seria informada dessa tragédia.
Todas as preocupações com os riscos ambientais que podem ser provocados pelo encalhe do Stellar Banner são bem-vindas, mas é preciso prestar mais atenção aos outros milhares de acidentes com embarcações que ocorrem na Região Amazônica e que não são divulgados.
PS: Na segunda-feira, dia 2 de arço, o número de mortos no naufrágio do Amapá foi atualizado para 13 vítimas.