O gigantesco potencial hidrelétrico dos rios da Bacia Amazônica é inquestionável e representa uma enorme vantagem competitiva para o Brasil na produção de energia elétrica renovável. A exploração desse potencial, entretanto, pode causar gigantescos impactos ambientais em áreas de mata, afetando sua flora e fauna, em populações ribeirinhas e povos indígenas, além de comprometer a própria dinâmica das águas em seus ciclos de cheias e secas. Na última postagem falamos rapidamente dos impactos negativos criados pela construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.
Inaugurada no final de 1984, Tucuruí formou um problemático lago com 200 km de comprimento e com uma área total de 2.850 km². A hidrelétrica tinha uma potência instalada inicial de 4 mil MW, que após sucessivas ampliações atingiu em 2010 uma capacidade total de 8,37 Mil MW, número que a colocou entre as maiores geradoras do mundo. Analisando-se friamente esses números, mesmo considerando os enormes prejuízos sociais e ambientais, chega-se à conclusão que os “ganhos” no longo prazo foram positivos. Como um contraponto, hoje vamos falar da Usina Hidrelétrica de Balbina, um empreendimento que provocou estragos quase tão grandes quanto a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, mas que gera apenas uma fração da energia elétrica dessa última.
A Usina Hidrelétrica de Balbina está localizada no município de Presidente Figueiredo, distante cerca de 200 km da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas. O polêmico empreendimento foi concebido ainda durante o período dos Governos Militares (1964-1985) e concluído em 1989, com o objetivo de fornecer metade da energia elétrica consumida na cidade, onde se localizam os importantes Polo Industrial e a Zona Franca de Manaus. O rápido crescimento da cidade não demorou a desequilibrar a oferta energética de Balbina, que tem uma potência total instalada de apenas 250 MW, e que atualmente fornece, em média, pouco mais de 10% do consumo de energia elétrica manauara.
A Usina Hidrelétrica de Balbina está localizada no rio Uatumã, um dos afluentes do rio Amazonas, e teve suas obras de construção iniciadas em 1985. A barragem da Usina, com 51 metros de altura, provocou o alagamento de uma área total de 2.360 km², quase duas vezes o tamanho do município do Rio de Janeiro. Apesar de toda essa área inundada, o volume de produção média de energia elétrica no empreendimento se situa na casa dos 112 MW – em períodos de forte estiagem, a produção elétrica chega a cair para 50 MW. De acordo com especialistas do setor, Balbina é a pior usina hidrelétrica do Brasil dentro de uma lista com 116 empreendimentos, quando se compara a área alagada com a capacidade de produção.
Pesquisadores da UFAM – Universidade Federal do Amazonas, e do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, alertaram insistentemente as autoridades do setor elétrico da época sobre o erro que seria a construção de Balbina. Isso aconteceu no momento em que a Hidrelétrica ainda estava na fase de projeto e os estudos podiam ter sido paralisados. As “otoridades” preferiram não dar ouvidos aos especialistas da Região Amazônica e o desastre social e ambiental acabou consumado, criando o que muitos consideram “um dos maiores crimes ambientais que a engenharia já cometeu neste país”.
Ao contrário dos baixíssimos volumes de produção de energia elétrica, Balbina e seu gigantesco lago são verdadeiros campeões quando se fala na produção e emissão de gases de efeito estufa como o metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2). Como aconteceu em outros empreendimentos hidrelétricos, grande parte da floresta que existia nas áreas que seriam alagadas pelo reservatório não foram suprimidas antes do fechamento das comportas da represa.
Quando encoberta pelas águas, essa vegetação começa a apodrecer e a emitir os gases. Nos momentos de seca, quando as águas baixam, essas emissões são ainda maiores. Para cada MW de energia elétrica produzido na Usina Hidrelétrica de Balbina, há uma emissão de 3 toneladas de gases de efeito estufa – numa usina termelétrica, essas emissões são 10 vezes menores e se situam na casa de 0,3 tonelada para cada MW produzido.
A retirada da população ribeirinha das áreas sujeitas ao alagamento seguiu um roteiro bastante conhecido: pessoas sendo retiradas de suas casas com promessas de uma vida melhor no futuro. Quem, eventualmente, resistisse à desapropriação, acabava sendo retirado à força. Durante as fases inicias das obras, onde há muito serviço braçal, muitos dos chefes de família até conseguiram arranjar trabalho. Entretanto, conforme o grau de complexidade dos trabalhos foram crescendo, as oportunidades de trabalho para essas pessoas foi diminuindo. Da mesma forma que aconteceu em outras obras para a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia, grande parte desses desalojados do rio Uatumã não recebeu nenhuma indenização – quem recebeu alguma coisa, recebeu muito pouco dinheiro.
Depois da conclusão das obras, um grande número de famílias desalojadas passou a ocupar uma vila de casas, construídas originalmente para receber os trabalhadores das obras. A construtora responsável pelas obras conseguiu expulsar uma grande parte dos invasores, alegando que precisava desmontar as casas, que seriam enviadas para um novo canteiro de obras no Estado do Pará. Cerca de 250 famílias conseguiram continuar vivendo nessa vila. Alguns anos mais tarde, essas casas passaram a receber a energia elétrica gerada em Balbina. Aqui há uma grande ironia da história – a tarifa cobrada por essa energia elétrica era, simplesmente, a maior tarifa praticada por uma empresa de distribuição de energia no Brasil.
Outro grupo que foi fortemente impactado pela construção de Balbina foram os indígenas Waimiri Atroari, que se autodenominam Kinja. Suas Terras Indígenas foram afetadas pelo enchimento do reservatório da Hidrelétrica, relembrando que, naqueles “tempos de chumbo” (as obras começaram dentro do Período dos Governos Militares), não havia espaço para reclamação ou necessidade de se realizar estudos prévios de impactos ao meio ambiente. Os Indígenas dessa etnia sofreram sucessivos impactos a partir da década de 1960, quando começaram a ser feitas as grandes obras na Região Amazônica. Uma dessas obras, a construção da Rodovia BR-174, que liga Manaus, no Estado do Amazonas, a Caracaraí, em Roraima, atravessou as suas terras e causou um forte impacto na população.
Outro projeto impactante foi o início da mineração da cassiterita em 1981, que forçou a retirada dos indígenas das áreas onde havia o mineral. Diferentemente de nós, que nos autodenominamos “civilizados” e nos apegamos a bens materiais, os indígenas têm uma forte ligação com a terra, as águas, com os espíritos das matas e elementos sagrados – as populações ribeirinhas herdaram muitos desses valores indígenas.
Um desligamento abrupto desses “elementos” intangíveis altera completamente o seu modo de vida e as suas expectativas – os mais velhos das comunidades, frequentemente, não sobrevivem às mudanças. Um levantamento feito pela Funai – Fundação Nacional do Índio, nas terras dos Waimiri Atroari em 1972, mostra isso com uma clareza absoluta: o censo encontrou cerca de 3 mil índios da etnia na região; apenas dois anos depois, um novo recenseamento encontrou apenas 600 indivíduos.
Os impactos ao meio ambiente também foram fortíssimos, o que foi comprovado através de um recente estudo sobre a biodiversidade existente nas 37 ilhas formadas no lago da Hidrelétrica (vide foto), que foi comparada com 3 áreas florestais próximas. Foi constatado que a maioria das populações de grandes mamíferos, aves e tartarugas desapareceu das terras dessas ilhas; apenas 0,7% do território das ilhas ainda conservavam uma comunidade diversificada de espécies.
O isolamento de espécies animais em ilhas, conforme os ensinamentos da Biologia da Conservação, é um caminho praticamente sem volta para a extinção de espécies. Estoques limitados de alimentos, falta de diversidade genética e baixos índices de natalidade, estão entre os principais problemas. Os territórios dessas ilhas também sofreram com vendavais, tempestades e incêndios.
As populações da fauna e flora aquática também sofreram seus próprios impactos. O barramento do rio altera completamente os ciclos das águas, que na Floresta Amazônica apresentam enormes variações entre os períodos de seca e de cheia. As barragens provocam fortes alterações nos ambientes dos rios, que passam da condição de lótico, ou de águas rápidas, para lêntico, ou ambiente de águas paradas. Muitas espécies de peixes e de outros animais adaptados a um ciclo de vida em águas rápidas e a constantes migrações contra a correnteza do rio, de uma hora para outra passam a viver em um mundo de águas paradas, perdendo completamente sua orientação, inclusive na caça de suas presas.
Já as espécies de águas lentas ou paradas, essas passam a se multiplicar sem controle, alterando complemente o equilíbrio natural do ambiente. Essas mudanças nas águas também afetam toda a flora local – muitas espécies de árvores dependem das cheias sazonais dos rios para dispersar suas sementes. E sem gerar descendentes, essas árvores poderão desaparecer da região no médio e longo prazo. As águas paradas do reservatório também proporcionam uma multiplicação sem controle da vegetação aquática, especialmente das macrófitas. À época da seca, quando as águas do reservatório baixam consideravelmente, toneladas dessas plantas mortas se amontoam sobre as terras nuas e passam a liberar grandes volumes de gases de efeito estufa.
Nossa moderna sociedade tecnológica não consegue sobreviver um dia sequer sem as facilidades e comodidades proporcionados pela energia elétrica. E dentre as diversas fontes disponíveis para a geração de grandes volumes de energia elétrica, as fontes hidráulicas ainda são as que apresentam os menores custos econômicos, sociais e ambientais no longo prazo. Devidamente pensadas, projetadas e construídas, as usinas hidrelétricas da Amazônia poderão dar uma enorme contribuição à sociedade brasileira. Agora, “desastres” ambientais como foi a construção Balbina deverão ser evitados a qualquer custo.
A Usina Hidrelétrica de Balbina foi um dos grandes erros do nosso país na área da energia elétrica, criando imensos impactos ambientais e sociais sobre uma extensa região da Floresta Amazônica, nos dando pouquíssimos benefícios em troca. Não é à toa que muitos especialistas pregam a desativação da Usina e demolição completa da sua barragem.
Acho que pouca gente na Amazônia iria sentir a sua falta…
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