Numa sequência de postagens anteriores, falamos da construção e dos impactos criados pela Usina Hidrelétrica de Itaipu. Construída na calha do rio Paraná entre o Brasil e o Paraguai, Itaipu foi durante várias décadas a maior usina hidrelétrica do mundo. Com a construção e a entrada em operação gradativa dos grupos geradores da usina hidrelétrica de Três Gargantas, na China, é apenas uma questão de tempo para que Itaipu perca, em definitivo, esse título.
A gigante Itaipu é uma campeã em eficiência na produção de energia elétrica – a escolha de um sítio com as melhores condições técnicas no rio Paraná, permitiu a construção de uma barragem com uma altura de 196 metros e a formação de um lago com “apenas” 1.350 km² de superfície. Essa infraestrutura permite o acionamento de 20 grupos geradores, com uma potência total instalada de 14 mil MW. A Usina Hidrelétrica de Porto Primavera, tema da postagem de hoje, é diametralmente oposta – sua barragem forma um lago com 2.250 km² de superfície e seus 14 grupos geradores alcançam uma potência máxima de 1.540 MW, ou seja, uma geração de energia elétrica 9 vezes menor do que a de Itaipu.
Porto Primavera também é dona de números superlativos, porém, ao contrário de Itaipu, esses números são majoritariamente negativos. A barragem da usina é a maior do Brasil, com uma extensão total de mais de 10 km. O lago do seu reservatório é sete vezes maior que a Baía da Guanabara. A obra provocou enormes impactos ambientais e necessidade de grandes volumes financeiros para o pagamento de desapropriações, problemas que elevaram os custos de construção para mais de US$ 9 bilhões – dinheiro e problemas demais para uma geração elétrica “de menos”. Especialistas do setor consideram essa usina hidrelétrica como a “3ª menos eficiente do mundo”, só perdendo para Balbina, no Estado do Amazonas, e para uma hidrelétrica no Egito.
Conforme já comentamos em postagens anteriores, o período dos Governos Militares foi fecundo para o projeto e a construção de grandes obras de infraestrutura, entre as quais se incluem a construção de grandes usinas hidrelétricas pelos quatro cantos do país. Contando com grandes volumes financeiros disponíveis no mercado internacional a juros baixos e sem uma oposição política com força suficiente para questionar suas decisões, os sucessivos governos militares seguiam à risca seus planos de construção – quaisquer impactos sociais e/ou ambientais eram, simplesmente, classificados como “custos do progresso”. Os planos para a construção da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera foram gestados nesse “ambiente” a partir do ano de 1980. Graças a uma série de atrasos nas obras e na liberação dos recursos, a usina só foi concluída no início da década de 2000.
Diferente de suas coirmãs construídas na calha do rio Paraná, a hidrelétrica de Porto Primavera teve sua construção executada num período onde obras passaram a ter de realizar estudos de impactos ao meio ambiente. Só para relembrar, a Resolução CONAMA 001, publicada em 23 de janeiro de 1986, estabeleceu as definições, as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais dos Estudos de Impactos Ambientais e seu uso como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. E como os impactos ambientais e sociais que a obra desencadearia por uma extensa região seriam enormes, o projeto foi alvo de um sem número de ações e processos judiciais, especialmente a partir de meados da década de 1990.
De acordo com os estudos realizados na área sujeita ao alagamento após a conclusão da barragem, foram identificados e catalogados 118 sítios arqueológicos, além de serem identificadas 1.729 famílias vivendo nas áreas ribeirinhas e em propriedades rurais, especialmente no lado mato-grossense da obra. A região também abrigava um dos maiores e melhores depósitos de argila da América do Sul. Também foi concluído que as águas encobririam mais de 70 ilhas fluviais do rio Paraná, muitas delas cobertas por vegetação nativa original e habitats de uma grande variedade de espécies animais.
Entre os diversos ecossistemas colocados em risco pela formação do lago da hidrelétrica destacam-se os varjões, áreas alagáveis com vegetação e animais similares ao Pantanal de Mato Grosso. Esses verdadeiros mini pantanais, localizados em sua grande maioria no lado Sul mato-grossense (cerca de 80% do reservatório se formou no lado do Estado de Mato Grosso do Sul), eram o habitat de, pelo menos, 14 espécies ameaçadas de extinção como a onça-pintada, o jacaré-de-papo-amarelo e os cervos-do-pantanal (vide foto). Na região também se encontravam espécies das regiões de Cerrado como as onças pretas e pardas, também conhecidas como suçuaranas, tamanduás, gambás, tatus, cuícas, bugios, macacos-prego, além de uma infinidade de espécies de aves.
Depois de uma intensa batalha judicial e de sucessivas liminares que impediam o início do enchimento do lago do reservatório, a CESP – Centrais Elétricas de São Paulo (que depois teve seu nome mudado para Companhia Energética de São Paulo), empresa responsável pela obra, conseguiu derrubar a última liminar do Ministério Público no final de 1998 e iniciou o processo de enchimento do lago às pressas. A empresa tinha urgência na conclusão das obras da usina hidrelétrica e do enchimento do lago, com vistas à inclusão do empreendimento no pacote de privatizações do setor elétrico, incluindo Porto Primavera no mesmo pacote em que já se encontravam as hidrelétricas de Jupiá e de Ilha Solteira.
Graças a esse processo apressado de enchimento do lago, não houve tempo suficiente para a supressão total da vegetação nas áreas que ficariam submersas. Também não houve condições para o resgate e a realocação da fauna silvestre – muitos animais acabaram presos em pequenos fragmentos florestais e acabaram por se afogar. É interessante observar que todo esse processo foi realizado sem a liberação da respectiva licença ambiental, que só foi liberada em 4 de dezembro do ano 2000, cerca de dois anos depois do início do enchimento do lago. Esses “pequenos” detalhes mostram o verdadeiro jogo de interesses econômicos que cercavam a obra.
De acordo com a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, a forma como foi feito o enchimento do lago da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera foi um “desastre ambiental sem precedentes no Brasil, afetando 22 espécies anfíbios, 37 répteis, 298 aves e 60 mamíferos, muitos ameaçados de extinção, além de erosões e assoreamento do rio, comprometendo a qualidade da água e gerando problemas de oxigenação do lago”.
Os altos custos e a baixa eficiência da hidrelétrica também se tornaram alvo das críticas de especialistas do setor. De acordo com técnicos da USP – Universidade de São Paulo, bastavam alguns ajustes técnicos nas Usinas Hidrelétricas de Jupiá e de Três Irmãos, instalando todos os grupos geradores previstos no projeto, para se gerar a eletricidade prevista em Porto Primavera. Esses ajustes técnicos representariam uma fração dos custos de construção de Porto Primavera, algo que não interessava para as autoridades e empresas envolvidas na obra.
O resumo dessa verdadeira “ópera bufa” é que a Usina Hidrelétrica de Porto Primavera custou, aproximadamente, 65% do valor gasto com a construção de Itaipu, gerando 9 vezes menos energia elétrica e inundando uma área 70% maior. Para piorar o desastre, causou gigantescos problemas sociais e ambientais.
Bons projetos como o de Itaipu, devidamente licenciados e acompanhados por toda a sociedade, serão sempre bem vindos – agora, desastres econômicos, sociais e ambientais como Porto Primavera precisam ser banidos de nossas terras para sempre.
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