AS GRANDES ENCHENTES DO RIO CAPIBARIBE

Enchente Recife 1975

Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, a cidade do Recife viveu a maior catástrofe natural da sua história: o transbordamento do rio Capibaribe atingiu 31 bairros e alagou 80% da superfície da cidade (vide foto) – 350 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e, tragicamente, 104 pessoas morreram. As fortes enchentes também atingiram outros 25 municípios da bacia hidrográfica do rio Capibaribe. Esta não foi nem a primeira, nem a última grande enchente do rio Capibaribe, mas sem dúvida é uma das mais trágicas da história.

O primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa e a consolidação da Suickerland, a terra do açúcar descrita em uma postagem anterior. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”. Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966, 1970, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e estou apenas citando alguns casos. Deixem-me tentar explicar algumas das causas deste fenômeno:

Ao longo de muitos milênios, os sistemas naturais foram se adaptando aos inevitáveis e periódicos ciclos de chuvas: canaletas naturais de escoamento foram escavadas por erosão nas faces de serras e montanhas, leitos de córregos e rios criaram áreas de várzeas para absorver o excedente de águas das cheias, pedras e gargantas em rios montanhosos foram moldadas para reter e reduzir a velocidade dos excedentes de água, os diferentes tipos de vegetação se adaptaram para armazenar parte da água da chuva e suas raízes foram adaptadas para forte fixação no solo e evitar o arrastro com a enxurrada. O próprio solo desenvolveu diferentes tipos de permeabilidade, absorvendo volumes consideráveis de água de chuva e assim reduzindo os volumes de água que correm desesperadamente a procura das partes baixas dos terrenos – são sistemas em equilíbrio.

Os diferentes tipos de intervenção humana nos meios naturais interferem com esse delicado equilíbrio natural, produzindo distorções na dinâmica das águas pluviais. Na agricultura, a remoção de grandes extensões de cobertura vegetal para a formação das culturas resulta em alterações nos volumes de absorção de água pelo solo e formação de grandes correntes de água: sem a proteção da vegetação que reduz a velocidade da correnteza, grandes volumes de solo agricultável são arrastados para os leitos dos rios. O assoreamento dos rios reduzirá cada vez mais a capacidade desse rio em receber futuros excedentes de águas de chuva – a água avançará cada vez mais na direção das bordas das margens e produzirá cada vez maiores assoreamentos neste rio. Cria-se uma continuidade de problemas que crescem cada vez mais.

Em grandes cidades como o Recife, o crescimento desenfreado das construções interfere cada vez mais na dinâmica das chuvas:

– A ocupação cada vez maior de encostas de morros leva a remoção da cobertura vegetal e ao corte do solo para a construção de habitações. Períodos de chuva mais intensos saturam o solo com água, o que pode provocar sérios desmoronamentos, com alto risco para os moradores;

– A impermeabilização do solo resultante da aplicação de imensas faixas de asfalto nas ruas, concretagem de calçadas e quintais, reduz drasticamente a absorção de água pelo solo e provoca a formação de fortes enxurradas, com enorme potencial de inundações;

– Construções ocupam grandes extensões de solo e concentram nos seus telhados grandes volumes de água que descem velozmente por sistemas de calhas e se somam as volumosas enxurradas do solo;

– Áreas de várzea, que originalmente absorviam os excedentes de águas nos períodos de chuva, foram aterradas para permitir o aumento da área disponível para as construções: ao longo de toda a história do Recife, grandes extensões de manguezais foram aterradas para permitir este avanço da cidade;

– Margens de rios e córregos foram retificadas e urbanizadas, diminuindo a área de recepção das águas excedentes e, em muitos casos, diminuindo a velocidade da correnteza do curso d’água, e aumentando assim o tempo de drenagem das águas da chuva.

– Restaram nas áreas urbanas poucas áreas verdes e remanescentes florestais com grande capacidade de absorção de água nos seus solos e pela vegetação.

As consequências dessa somatória de interferências humanas no meio ambiente urbano são enchentes cada vez maiores e mais frequentes nas cidades, deslizamentos de encostas de morros, prejuízos econômicos enormes e, tristemente, danos algumas vezes irreparáveis na saúde de populações inteiras, inclusive com situações de invalidez permanente ou morte dos mais desafortunados.

Além destas consequências mais imediatas, situações de catástrofe por enchentes tendem a provocar o desalojamento de famílias (temporário em áreas alagadas ou definitivo em casos de desmoronamentos), interrupções nos serviços de fornecimento de água, energia elétrica e gás, saturação nos sistemas de esgoto sanitário (por ligações irregulares de águas pluviais), contato direto das populações com águas contaminadas por esgotos, o que pode resultar na disseminação de doenças de veiculação hídrica como leptospirose, hepatite e cólera, entre outros problemas.

Essas tragédias não são uma exclusividade de grandes cidades brasileiras como Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, para citar apenas algumas – elas atingem grandes metrópoles mundiais como Londres, Paris, Hamburgo, Calcutá, Camberra, Houston, entre outras. Eventos climáticos extremos como as enchentes em algumas regiões e grandes secas em outras são, na minha opinião e também na opinião de um grande número de estudiosos, resultados das muitas ações da humanidade contra a natureza.

No caso da Região Metropolitana do Recife, precisamos incluir no cálculo dos prejuízos das enchentes o intenso processo de destruição da faixa Nordeste da Mata Atlântica durante o ciclo do açúcar, que começou logo após a instalação da Capitânia de Pernambuco por Duarte Coelho e que, ainda hoje, tem suas repercussões nas águas do Capibaribe e de tantos outros rios da região. A destruição desta floresta produziu uma série de mudanças no clima regional com alterações no ciclo das chuvas, além de perda de fertilidade dos solos, redução da biodiversidade vegetal e animal, entre outros graves problemas.

Trataremos disto em nosso próximo post.

“MONSTRO” DE LIXO E GORDURA ENTOPE ESGOTO DE LONDRES”

A LIMPEZA LEVARÁ TRÊS SEMANAS E PRECISARÁ DE MUITA MÃO-DE-OBRA E MAQUINARIA

One of the biggest "fatbergs" ever seen in Britain, a ball of fat as long as three soccer pitches, is seen after it was found blocking a Victorian-era, east London sewer, in an image handed out by Thames Water

Uma notícia publicada esta semana pela Revista Veja e que um blog especializado em Recursos Hídricos e Saneamento Básico não poderia deixar de replicar. Problemas de entupimento nas redes de esgotos de nossas cidades, pelas mesmas causas, ocorrem diariamente, mas não nestas proporções – não estamos livres de algo semelhante acontecer por aqui. A principal causa de entupimentos de redes aqui no Brasil é o lançamento de óleo de fritura usado nas pias das cozinhas – uma típica família brasileira chega a descartar 2 litros de óleo/gordura a cada mês, hábito que está entre as causas de até 50% dos entupimentos atendidos pelas principais empresas de saneamento básico. Leiam:

Uma gigantesca massa formada por gordura, fraldas, lenços umedecidos, óleo congelado e outros resíduos humanos está entupindo os esgotos de Londres, na Inglaterra. O aglomerado de sujeira pesa cerca de 130 toneladas e se estende por quase 260 metros no subterrâneo do distrito de Whitechapel.

Segundo Matt Rimmer, diretor do departamento de resíduos da empresa Thames Water, responsável pela distribuição e tratamento de água de Londres, esta é a maior massa de detritos já encontrada na cidade. Serão necessárias cerca de três semanas para retirar toda a sujeira do local e liberar o esgoto.

“É um grande monstro e vai ser necessária muita mão-de-obra e maquinaria para a remover, porque é dura”, disse Rimmer ao jornal Telegraph. “É basicamente como tentar partir uma parede de cimento.”

Serão usadas mangueiras de alta pressão para quebrar a massa e aspiradores para sugar os pedações. Os resíduos depois serão transportados para uma área de reciclagem. O trabalho de limpeza, que foi iniciado nesta segunda-feira (11/09/2017), levará três semanas.

“É frustrante porque estas situações são totalmente evitáveis e provocadas pela gordura, óleo e banha que são jogadas nas pias e pelos lenços umedecidos jogados nos vasos sanitários”, afirmou Rimmer.

“Nós verificamos os esgotos regularmente, mas estas coisas se acumulam muito rápido e provocam problemas de inundações, porque o lixo cria um bloqueio para a água”, explicou o responsável. A empresa Thames Water gasta cerca de 1 milhão de libras por mês para limpar os esgotos da cidade.

CAPIBARIBE: O 7° RIO MAIS POLUÍDO BRASIL

Toritama - foto Eduardo Irineu

A Região Metropolitana do Recife é um dos maiores aglomerados populacionais do Brasil, com uma população de aproximadamente 4 milhões de habitantes. Devido ao crescimento sem qualquer planejamento e a gritante falta de investimentos públicos, sua infraestrutura de saneamento básico é uma das mais deficientes entre as grandes metrópoles brasileiras. Falando especificamente da coleta de esgotos, apenas 35% da cidade do Recife é coberta por redes coletoras; em Olinda esse número cai para 32% e em Jaboatão dos Guararapes, essa cobertura cai para meros 7% – como o Capibaribe é um dos grandes rios que atravessam a Região Metropolitana, ele se torna, naturalmente, o grande receptor dos efluentes domésticos, industriais e agrícolas de uma extensa área, além de depósito de lixo e de outros resíduos sólidos. Seria muito cômodo atribuir todos os problemas do rio Capibaribe apenas ao trecho em que corta o imenso conjunto de cidades do Grande Recife. Os problemas da poluição do rio começam muito longe, ainda nas terras do Agreste pernambucano, e só vão aumentando conforme corre na direção do litoral.

Nos primeiros 60 km do seu curso, o Capibaribe é um rio temporário, que apresenta águas superficiais em apenas três meses do ano, justamente no período das chuvas. Ao longo da maior parte do ano, o leito do rio não é nada mais do que um longo caminho de areia e pedras. Mas ao contrário do que possa parecer à primeira vista, ele não está completamente seco – um rio subterrâneo corre por baixo de uma não muito espessa camada de areia. Os agricultores da região escavam poços e conseguem captar água durante o ano inteiro, produzindo até três colheitas de legumes e verduras através de sistemas de irrigação. Em troca por este tão importante serviço ambiental, as plantações devolvem grandes volumes de resíduos de pesticidas e fertilizantes aplicados nas culturas, que infiltram no solo e contaminam as águas do lençol subterrâneo. Outro problema característico deste trecho é a retirada de areia para uso na construção civil – o leito esburacado acumula bolsões de água que se perdem por evaporação.

Um problema grave encontrado na região do Alto Capibaribe são os despejos de matadouros e curtumes, lavanderias e outras pequenas unidades industriais, encontrados em grande quantidade nas cidades médias e pequenas. Essas localidades costumam apresentar uma série de deficiências na coleta dos esgotos – a cobertura por redes coletoras públicas é muito pequena e as ETEs – Estações de Tratamento de Esgotos, são raridades. Logo, o lançamento dos efluentes destes estabelecimentos tem como destino final os corpos d’água locais, que acabarão desaguando no canal do rio Capibaribe.

Exemplo típico deste problema: no município de Santa Cruz do Capibaribe, a 194 km do Recife, havia um problema crítico de poluição nas águas do rio: a água repentinamente ficava com a cor vermelha – o responsável por esta contaminação era o matadouro municipal da cidade, instalado nas margens do rio, que despejava seus efluentes contaminados com o sangue dos animais abatidos, sem qualquer tipo de tratamento. Em 2010, uma série de reportagens em cadeia nacional levou a prefeitura local a tomar providencias e mudar o matadouro para uma outra instalação com “melhor” infraestrutura – as águas do Capibaribe deixaram de ficar vermelhas. Tempos atrás, após uma denúncia, repórteres flagraram crianças conduzindo carroças com tambores cheios de sangue de animais abatidos neste matadouro, que seriam despejados em uma cacimba no município vizinho – Brejo da Madre de Deus. Outro exemplo: na cidade de Toritama, alguns quilômetros a montante, as águas do rio Capibaribe apresentam um problema de poluição que também altera a cor das águas, que oscilam entre o azul e o vermelho. A cidade é um grande polo industrial – o segundo maior produtor de calças jeans do Brasil, e muitas das tinturarias da cidade despejam efluentes com os corantes industriais (vide foto) sem qualquer tipo de tratamento nas águas do Capibaribe.

A partir da cidade de Limoeiro, a cerca de 80 km da cidade do Recife, o rio Capibaribe entra numa região de transição entre o Agreste e a Zona da Mata, recebendo grandes contribuições de afluentes mais caudalosos e vai iniciar a travessia de áreas cobertas por extensos canaviais. Até o inicio da colonização brasileira no século XVI, essa região era coberta pela densa Mata Atlântica, floresta que alimentava o rio com suas águas e protegia as suas margens com uma vegetação luxuriante. Ao longo de milhares de anos, a Mata Atlântica produziu uma grossa camada de solo orgânico, o massapê, que devido às suas extraordinárias características químicas e fertilidade sem igual, passou a ser cobiçado pelos novos colonizadores, que passaram a destruir sistematicamente a floresta para abrir espaço para a produção do super valorizado açúcar, produto básico da produção e exportação colonial. Ao longo dos séculos seguintes, a Mata cedeu cada vez mais espaço para as plantações, além de volumes substanciais de lenha para a produção da energia das caldeiras das usinas (para produzir 1 kg de açúcar era necessária a queima de 20 kg de lenha). A calda das canas se transformava numa enorme variedade de produtos: o açúcar branco ou de purga, o cristal e o mascavo, além do melado de cana ou mel de engenho, diferentes tipos de rapadura e de aguardente, esta última uma importante moeda de troca nos tempos coloniais: os traficantes trocavam a aguardente e rolos de fumo, produzidos no Brasil, por escravos revendidos em inúmeros portos espalhados por toda a costa do continente africano. A cultura da cana-de-açúcar legou uma série de problemas para o rio Capibaribe:

– Sem a proteção da Mata Atlântica, os solos de massapê expostos às chuvas passaram a sofrer um forte processo de erosão, que carregou milhões de metros cúbicos de terra fértil para dentro da calha dos rios;

– O cultivo da cana exige o uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos – resíduos destes produtos acabam sendo arrastados pelas chuvas na direção dos rios, causando uma série de problemas para a flora e a fauna aquática;

– O processamento da cana para a produção do açúcar e do álcool liberam grandes volumes de resíduos – destaque para o vinhoto (cada litro de álcool produzido gera até 15 litros de vinhoto), que se despejado sem controle nas águas de um rio, pode provocar sérios problemas de poluição ambiental.

E o conjunto da obra de quase quinhentos anos de agressões ambientais, despejos de resíduos sólidos de todo o tipo, desmatamentos, assoreamentos e envenenamentos não poderia ser outro: um rio agonizante a pedir socorro.

Até o nosso próximo post.

O RECIFE HOLANDÊS, OU JOHAN MAURITS VAN NASSAU-SIEGEN

Franz Post

Imagine a seguinte situação hipotética: numa reunião da alta administração da Apple Computers, é decidido que a empresa vai implementar um plano global para o domínio do mercado de produção e venda das maçãs em todo o mundo (estou fazendo aqui, é claro, uma brincadeira com o nome e logotipo da empresa). Numa das fases da implementação deste plano, um dos porta aviões nucleares da empresa, o USS “Steve Jobs”, equipado com os mais modernos aviões, mísseis e veículos blindados, além de milhares de Apple Marines, atracará em Florianópolis e, em poucas horas, os comandos especiais da empresa assumirão o controle total do Estado de Santa Catarina e partes do Rio Grande do Sul – lembrando aqui que essas regiões concentram a quase totalidade das áreas de produção das maçãs no Brasil.

Imagine agora que o CEO (Chief Executive Officer) designado para coordenar as operações no Brasil, resolva por conta própria e sem aval da companhia, além de controlar todas as plantações e os canais de comercialização regionais das maçãs começar a fazer investimentos na infraestrutura local usando dinheiro da empresa: instalação de redes de fibra ótica, roteadores de dados, servidores de rede, estações de comunicação via satélite e de telefonia celular.

Guardados os devidos exageros, que nas minhas metáforas são sempre muitos, foi mais ou menos isso que aconteceu no Brasil holandês sob o comando de Johan Maurits van Nassau-Siegen ou Maurício de Nassau como é comum se encontrar nos livros de história – para os pernambucanos, íntimos do vulto histórico, simplesmente Nassau.

A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais era uma instituição privada, criada a 3 de junho de 1621. O capital social inicial da Companhia correspondia a aproximadamente sete milhões florins. Seus privilégios de monopólio durariam inicialmente vinte e quatro anos. A empresa era dividida em cinco câmaras, representando os acionistas de Amsterdam, Zelândia, cidades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia. Os diretores, em número de dezenove, operariam alternadamente em Amsterdam e Middelburg. A área de operação (privilegiada) seria na África, do trópico de Câncer ao cabo da Boa Esperança; ao Ocidente, desde Terra-Nova, no Atlântico, até o estreito de Anian no Pacífico. Desde o ano de 1602 já estava em operação a Companhia Holandesa das Índias Orientais (que operou até o ano de 1799), cuja finalidade era a exploração das rotas comerciais no extremo oriente e foi o modelo para a criação Companhia Ocidental. A ocupação holandesa no Brasil compreendeu o período entre 1630 e 1654.

Maurício de Nassau era um nobre de origem alemã, educado na Suíça e militar com uma respeitável folha de serviços sob ordens dos Países Baixos. Era também um homem de grande refinamento cultural, amante das artes e das letras, além de um entusiasta da arquitetura. Por todas estas qualidades pessoais, e é claro pelos relacionamentos familiares, Nassau foi convidado a assumir o posto de “CEO” das operações da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, com um salário “principesco”, inúmeros privilégios e serviçais, além da promessa de recebimento de um prêmio de 2% sobre os lucros nas operações da empresa no Brasil.

Após a consolidação do controle militar de uma ampla faixa do litoral nordestino ao norte do Rio São Francisco, Nassau estabeleceu uma relação “amigável” entre os holandeses e brasileiros, incluindo alguns incentivos nunca vistos antes durante a gestão portuguesa. Esses incentivos se enquadram na mesma política de incentivos das grandes corporações modernas, que esperam assim estimular os funcionários a produzir mais e melhor, com custos cada vez mais baixos. No nosso caso, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais sob a administração de Maurício de Nassau:

– Incentivou, através de empréstimos, a reestruturação de aproximadamente 150 engenhos de açúcar do Nordeste ocupado;

– Introduziu inovações com relação à fabricação de açúcar, inclusive com o apoio de especialistas europeus no trabalho de melhoramento das espécies de cana plantadas;

– Favoreceu um clima de tolerância e liberdade religiosa, inclusive aos perseguidos judeus – a primeira sinagoga das Américas foi construída na cidade do Recife (inclusive é um dos pontos de interesse turístico da cidade até hoje);

– Modernizou a cidade de Recife, conhecida também como Cidade Maurícia (Mauritsstad), onde patrocinou (com dinheiro da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais) a reurbanização dos bairros de Santo Antônio e São José, onde foi feita a drenagem de terrenos, a construção de canais e diques, pontes, os Palácios de Friburgo e da Boa Vista, entre outras obras;

– Estabeleceu e organizou serviços essenciais como os sistemas de coleta de lixo e os serviços de bombeiros do Recife;

– Patrocinou a vinda de artistas, cientistas e naturalistas europeus, que retrataram, estudaram e documentaram as “surpreendentes” flora, fauna e população brasileira. A lista inclui: Willem Piso, cientista e médico que estudou doenças tropicais; Franz Post, paisagista e pintor (vide imagem); Zacharias Wagener, pintor primitivo; Cornelis Goliajath, cartógrafo; Georg Marcgraf, astrônomo; Caspar Barlaeus, humanista que escreveu a história da administração de Nassau, entre outros artistas e profissionais especializados como pintores, escultores, entalhadores, mestres de obras e vidraceiros.

– Determinou a construção de um observatório astronômico, do Jardim Botânico, de um jardim zoológico e de um museu de história natural.

Fiel à tradição arquitetônica holandesa de harmonia entre águas e cidades, Nassau urbanizou as margens do rio Capibaribe, removendo manguezais, murando as margens e aterrando várzeas, além de criar rampas e escadas para o embarque e desembarque de passageiros, o que popularizou o transporte fluvial na cidade e ajudou a criar a alcunha de “a Veneza brasileira”. O conjunto de obras realizadas por Maurício de Nassau na cidade do Recife somente seria superado, quase dois séculos depois, com a chegada da família Real portuguesa ao Rio de Janeiro, quando a cidade passou por um completo conjunto de obras de modernização e reurbanização.

A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais demitiu Nassau em 1644 devido a “irregularidades administrativas”, ou seja, a empresa invadiu o Nordeste do Brasil para ganhar dinheiro com a produção e comercialização do açúcar e não para construir cidades...

Para encerrar, um registro do grande historiador Capistrano de Abreu:

“Os últimos anos do seu governo cabem em poucas palavras. Da obra do administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na voragem de fogo e sangue dos anos seguintes; suas coleções artísticas enriqueceram vários estabelecimentos da Europa e estão estudando-as os americanistas; os livros de Barlaeus, Piso, Marcgraf, devidos a seu mecenato, atingiram uma altura a que nenhuma obra portuguesa ou brasileira se pode comparar nos tempos coloniais; parece mesmo terem sido pouco lidos no Brasil apesar de escritos em latim, na língua universal da época, tão insignificantes vestígios encontramos deles.”

Continuamos no próximo post.

UMA BREVE HISTÓRIA DO AÇÚCAR, OU O NASCIMENTO DA “SUICKERLAND”

Casarões-coloridos-do-Recife-antigo

É impossível falar do grau de degradação dos rios de Pernambuco, particularmente do Capibaribe e Ipojuca, que integram a lista dos 10 rios mais poluídos do Brasil, sem fazer uma revisão histórica do impacto da indústria açucareira desde os tempos Coloniais até os nossos dias. Acompanhem uma rápida apresentação da história do açúcar e de sua chegada as terras brasileiras:

A cana-de-açúcar que nós que conhecemos aqui no Brasil, a saccharum officinarum, é originária da Índia e resulta da hibridização de diversas espécies nativas do Sudeste asiático, incluindo espécies da própria Índia, da China, Nova Guiné, Filipinas, Malásia entre outras. Foram os indianos que desenvolveram o processo de produção e refino do açúcar. A palavra açúcar vem do sânscrito çakkara. Os árabes adaptaram a palavra para súkkar e posteriormente os gregos para sáckcharon. A palavra saccharum é a transcrição latina do vocábulo grego. Nas principais línguas da Europa ocidental e países nórdicos é bastante fácil perceber que a palavra árabe seguiu o caminho dos mercadores: açúcar, azúcar, azucre, sucre, azukre, sucre, suggar, siúcra, zucchero, suiker, zucker, sukker, socker, sukke, sykur e sokeri, respectivamente em português, espanhol, galego, catalão, basco, francês, inglês, irlandês, italiano, holandês, alemão, dinamarquês, sueco, islandês, norueguês e finlandês.

A cultura da cana-de-açúcar se estendeu primeiro da Índia para a Pérsia meridional e depois para a península da Arábia. Posteriormente, foram os árabes que difundiram a cana-de- açúcar à medida que ampliavam as suas conquistas territoriais, primeiro no Egito e norte da África, no ano 709, para o Sul da Espanha, no ano 711 e depois para Sicília em 827. Não tardou muito para que a alta sociedade da Europa ficasse “viciada” em açúcar, um produto extremamente caro, vendido em gramas nas melhores boticas das grandes cidades do Velho Continente. A venda em boticas, nomes das antigas farmácias, tem sua explicação: o açúcar era considerado uma droga com ótimos resultados no tratamento de doenças do estômago e dos olhos – o uso na culinária veio depois. O açúcar chegou em terras portuguesas no século XII, quando o rei Dom João I arrendou terras na região do Algarve para um comerciante genovês iniciar o plantio da cana-de-açúcar. Durante centenas de anos, o plantio da cana-de-açúcar, a produção e o refino do açúcar ficou restrito a um grupo pequeno e muito poderoso de empresários e comerciantes, especialmente italianos e alemães, que lucravam muito com a venda do produto.

Com o avanço das naus portuguesas pelo Oceano Atlântico e a descoberta das ilhas da Madeira e do Arquipélago de Cabo Verde nas primeiras décadas do século XV, Portugal percebeu que estes novos territórios apresentavam condições ideais para o plantio da cana e a produção do açúcar. O Governo português fez altos investimentos na compra de equipamentos para a moagem e o refino do açúcar, na contratação de técnicos especializados na operação e manutenção dos equipamentos e também na capacitação de pessoal para o trabalho nos engenhos. Em poucas décadas, o pequeno reino do Oeste da Europa, que já dominava como nenhum outro as técnicas da navegação oceânica, entrou no mercado europeu como um concorrente de peso ante os comerciantes que monopolizavam a produção e a venda do açúcar havia gerações. Após o descobrimento do Brasil em 1500, os portugueses perceberam rapidamente o imenso potencial de produção açucareira ao longo de sua fabulosa costa e não poupariam esforços na busca do posto de maior produtor de açúcar do mundo.

Em Pernambuco, Duarte Coelho implantou o primeiro engenho, provavelmente, em 1535 sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda. Entretanto, alguns historiadores afirmam que já em 1526 Pernambuco e Itamaracá produziam açúcar. Em 1576, Pero de Magalhães Gândavo, historiador e cronista português, lançou o livro História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, onde fez um recenseamento do número de engenhos de açúcar em operação no Brasil: na Capitania de Pernambuco já existiam 23 engenhos movidos a bois ou a água, com produção de 50 a 70 mil arrobas de açúcar (no Brasil e no Portugal a época, a arroba equivalia a 14,688 kg).  No livro História Geral do Brasil, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen afirma existir, entre os anos de 1580 e 1590, 66 engenhos em Pernambuco. Sejam quais forem os números reais, eles mostram que houve um crescimento vigoroso da produção e que Portugal amealhava um grande lucro com a venda do açúcar. Aliás, foi essa prosperidade econômica criada pelo açúcar a responsável por transformar o pequeno reino do Portugal, na época com pouco mais de 2 milhões de habitantes, numa das mais poderosas nações mundiais dos séculos XVI e XVII.

Esse sucesso todo, é claro, incomodou a concorrência. Pernambuco passou a ser conhecida na Holanda, que já era na época uma potência mercantil, como Suickerland: a terra do açúcar. Os comerciantes holandeses estavam perdendo muito dinheiro para Portugal no comércio do açúcar e decidiram implementar uma guerra comercial pelo domínio do mercado. Essa guerra comercial não é exatamente aquela ensinada nos manuais modernos de administração e marketing – falamos aqui de esquadras de galeões flamengos equipados com centenas de canhões e com milhares de mercenários armados até os dentes avançando contra os engenhos da costa Nordeste do Brasil. Sob o comando de uma empresa privada, a Companhia das Índias Ocidentais, esses holandeses já haviam tentado ocupar Salvador em 1624, uma ocupação que durou um ano, e depois, entre os anos de 1630 e 1654, conseguiram ocupar uma extensa área do Nordeste a partir da cidade do Recife. Finalizada a ocupação, surge uma das figuras mais emblemáticas da história do Brasil – o conde Maurício de Nassau (1604-1679), chefe executivo de operações da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil.

Apesar de ter representado um desastre econômico e político para Portugal, a ocupação holandesa teve consequências relativamente positivas para os senhores de engenho brasileiros e também para a população. Os mercadores holandeses tinham interesse em garantir o controle de uma das principais fontes produtoras do mundo e, assim, garantir o suprimento contínuo de açúcar, resultando em altíssimos lucros com a comercialização. A cidade do Recife, que na chegada dos invasores flamengos nada mais era do que um amontado de casebres de pau a pique com telhado de palha, passou por uma verdadeira revolução urbanística, arquitetônica (vide foto), artística e cultural sob o comando do conde Maurício de Nassau; os barrancos e manguezais que cobriam as margens do rio Capibaribe deram lugar a margens muradas e urbanizadas, com pontes, praças e dezenas de pontos para o embarque e desembarque de passageiros que faziam passeios de barco pelo rio – surgia a “Veneza brasileira”.

Vamos detalhar todas as melhorias feitas por Nassau na cidade do Recife e no rio Capibaribe no próximo post.

O ONIPRESENTE CAPIBARIBE, OU O “RIO DAS CAPIVARAS”

Capivaras no Rio Pinheiros

A primeira vez que ouvi falar do grande rio da cidade do Recife, o Capibaribe, foi numa aula ainda no ensino fundamental, quando um grupo de alunos apresentou um trabalho sobre a cidade e alguém leu a poesia Evocação do Recife, de Manuel Bandeira (1886-1968). Um trecho:

“… Capibaribe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras”

Como acontece com a maioria dos topônimos brasileiros, Capibaribe é uma expressão com origem em língua indígena – provém da junção dos termos em tupi kapi’wara ou kapi’bara, nome que os índios davam ao grande roedor “comedor de capim”; ‘y, que significa “água” ou “rio”; e pe, um advérbio de lugar que significa “em”. Capibaribe significa, literalmente, “o rio das capivaras”. Em tempos antigos, as capivaras eram encontradas em grandes bandos ao longo das margens e áreas alagadas do Capibaribe; nos dias atuais é bastante raro encontrar algum destes animais nadando nas águas do rio. Muitos atribuem o desaparecimento dos animais ao crescimento da Região Metropolitana do Recife e ao alto grau de poluição das águas do rio Capibaribe.

Eu discordo deste diagnóstico e acredito que isto só explica uma parte do problema: nas margens dos rios Tietê e Pinheiros, os campeões brasileiros absolutos em poluição, encontramos grandes bandos de capivaras pastando e nadando tranquilamente nas águas sujas dos rios e em áreas dentro da cidade de São Paulo. A foto que ilustra este post mostra um simpático grupo de capivaras tomando sol nas margens do super poluído Rio Pinheiros, ao lado da Estação Santo Amaro do Metrô de São Paulo. Logo, eu incluiria a caça predatória e o consumo da carne pelas populações mais pobres dos alagados entre as causas do desaparecimento destes animais das águas e margens do rio Capibaribe.

O rio Capibaribe tem uma ligação histórica e íntima com a cidade do Recife – é difícil até saber onde termina a cidade e onde começa o rio, uma vez que a maioria dos caminhos ou começam ou terminam em algum lugar próximo das águas do rio. Mas estas águas vêm de muito longe – as nascentes do Capibaribe ficam na Serra de Jacarará, no município de Poção, em pleno Agreste pernambucano, a 250 km da cidade do Recife. O nome do município faz referência ao grande poço de onde as águas brotam de dentro do solo – porém, a secura do Agreste cobra seu preço e o rio Capibaribe só apresenta as suas águas superficiais no trecho inicial durante três meses por ano, no período das chuvas: na maior parte do ano, um trecho de 60 km do seu leito não passa de um caminho seco de areia e pedras. As águas do rio fluem abaixo do solo e, para conseguir água, a população precisa cavar poços ao longo do leito do rio.

Conforme o “rio” avança em direção da Zona da Mata, ele passa a receber contribuições de inúmeros afluentes e passa a ser um curso de águas perenes. O rio Capibaribe percorre aproximadamente 270 km, atravessando 44 municípios, entre eles Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Limoeiro, Carpina, Paudalho e São Lourenço da Mata, quando finalmente cruza toda a cidade do Recife – aqui, como brincam os recifenses, “o Capibaribe se junta com o Beberibe para formar o Oceano Atlântico”.

A fartura de águas e de solos férteis, cobertos pela luxuriante Mata Atlântica, foram fundamentais para a formação do primeiro núcleo habitacional, que no futuro seria transformado na cidade do Recife. Ao longo das margens do rio Capibaribe foram sendo instaladas as grandes plantações de cana-de-açúcar e os primeiros engenhos, que a depender das fonte consultada somarão entre 14 a 16 unidades produtoras. O açúcar produzidos por esses engenhos das margens do Capibaribe, somado à produção de outras dezenas de engenhos ao longo da costa, dentro de poucos anos transformariam a Capitania de Pernambuco na maior produtora mundial de açúcar.

As águas da foz do rio, protegidas da violência do mar pela extensa linha da arrecifes, origem do nome da cidade, chamariam a atenção dos primeiros governantes instalados nas colinas de Olinda, onde o acanhado porto só permitia a atracação de pequenos veleiros. Não tardou muito para o porto da Capitania ser transferido para as águas do rio Capibaribe.

A fertilidade dos solos nas margens e várzeas do rio, a utilidade das suas águas para o transporte da produção e a existência de um porto na sua foz para o embarque do açúcar rumo aos mercados da Europa, transformaram o rio Capibaribe no sangue que corria através do coração da cidade do Recife. O célebre médico e escritor recifense Josué de Castro (1908-1973), autor de um dos maiores clássicos da literatura social do Brasil – A Geografia da Fome, resumiu de forma poética essa simbiose entre a cidade e a cultura da cana:

O Recife viveu, desde suas origens, sempre atraído por duas seduções opostas: a do vasto mar salpicado de caravelas e a do ondulado mar dos canaviais espalhados nas grandes várzeas. De um lado, pelo azul das águas e de outro pelo verde das canas” 

A prosperidade econômica vivida nas margens do rio Capibaribe e em toda a costa da região Nordeste não tardou a despertar a cobiça de nações estrangeiras – algumas décadas após a fundação da cidade do Recife, a região acabou invadida pelos holandeses, um período que acabou sendo fundamental para o desenvolvimento da cidade do Recife e para uma série de mudanças nas águas do rio Capibaribe.

Para entender como o Capibaribe se transformou num dos rios mais poluídos do Brasil, é necessário fazer uma rápida viagem pela história da cultura da cana-de-açúcar e do desenvolvimento da cidade do Recife.

Contaremos um resumo desta história no próximo post.

IPOJUCA E CAPIBARIBE: DOIS RIOS PERNAMBUCANOS NA LISTA DOS MAIS POLUÍDOS DO BRASIL

Rio Capibaribe

A lista dos rios mais poluídos do Brasil inclui dois ilustres pernambucanos: o rio Ipojuca, que ocupa um nada honroso terceiro lugar na lista nacional, e o rio Capibaribe (vide foto), em uma posição menos destacada no sétimo lugar do ranking. Antes de tratarmos dos problemas de cada um destes rios, é importante voltarmos no tempo, para os primeiros tempos da colonização do país, quando a cana-de-açúcar ditava a vida e os costumes da Colônia, marcando para sempre o meio ambiente do litoral de Pernambuco e de todos os seus rios. Conforme já comentei em postagens anteriores, anos atrás eu fiz um extenso estudo sobre a devastação ambiental na Região Nordeste, onde demonstrei o processo de destruição da Mata Atlântica e dos rios no trecho do litoral a partir da introdução da cana-de-açúcar. Leiam um trecho, já postado antes, que é bem elucidativo deste processo e possibilita uma boa introdução ao tema:

Por mais estranho que possa parecer hoje aos nossos ouvidos, acostumados que estamos a ouvir relatos sobre seca no sertão e problemas no abastecimento de água nas grandes capitais da região, a água era um elemento dominante da faixa litorânea do Nordeste e foi um elemento fundamental para a implantação da cultura da cana-de-açúcar. Essa cultura é dependente dos rios, riachos e chuvas que lhe fornecem água para o desenvolvimento das plantas; os engenhos dependiam da força das águas para mover as moendas e das suas vias fluviais para o transporte das canas cortadas dos campos para os centros de produção. O grande mestre Gilberto Freyre (1900-1987), conhecedor maior da história e cultura de Pernambuco, nos legou que todos os registros históricos dos antigos engenhos nordestinos sempre citam o nome de algum rio:

“Rios do tipo do Beberibe, do Jaboatão, do Una, de Serinhaém, do Tambaí, do Tibiri, do Ipojuca, do Pacatuba, do Itapuá. Junto deles e dos riachos das terras de massapê se instalaram confiantes os primeiros engenhos. Rios às vezes feios e barrentos, mas quase sempre bons e serviçais, prestando-se até a lavar os pratos das cozinhas das casas-grandes e as panelas dos mucambos (ou mocambos).”

Com a destruição das matas a ferro e a fogo, a qualidade e a disponibilidades da água dos rios entrou em um processo rápido de declínio. Sem a proteção da floresta úmida, inúmeras nascentes ou reduziram o volume de água para os rios tributários ou simplesmente secaram; sem a proteção das matas ciliares, a erosão do solo pelas chuvas tropicais levou embora em poucos anos a grossa camada de húmus que a natureza levou milhares de anos para formar.

Rios caudalosos que antes só podiam ser atravessados de canoa passaram a ser atravessados facilmente a pé graças ao contínuo assoreamento e entulhamento dos seus leitos. Águas límpidas e transparentes que permitiam os banhos de rio, as lavagens de roupas e louças transformaram-se em esgotos:

“O monocultor rico do Nordeste fez da água dos rios um mictório. Um mictório de caldas fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes. Envenenam as pescadas. Emporcalham as margens. A calda que as usinas de açúcar lançam todas as safras nas águas dos rios sacrifica cada fim de ano parte considerável da produção de peixes no Nordeste.

A calda citada neste comentário é o esgoto industrial das usinas, resultante dos processos de fabricação do açúcar e, em maior escala, do álcool. No caso do álcool, cuja produção sofreu um forte incremento na década de 1970 com o Pró-Álcool e em anos mais recentes com a produção de automóveis com motor flex, existe a liberação de um resíduo conhecido como vinhoto: a cada litro de álcool destilado se produz doze litros de vinhoto – isso porque estamos utilizando como exemplo a moderna tecnologia de destilação usada hoje; imagine o volume de resíduos despejados nos rios há época com o uso de tecnologias altamente rudimentares. Os engenhos sempre lançavam os resíduos no riacho ou no rio mais próximo. Os efeitos mais visíveis deste despejo eram a contaminação da água, tornando-a imprópria para o consumo, e a matança dos peixes e crustáceos dos rios e mangues. É sempre importante lembrar que áreas de estuários de rios e os manguezais são o berçário de uma infinidade de peixes oceânicos, que aí nasce e cresce, migrando depois para o mar aberto. Calcula-se que até dois terços dos peixes de grande valor comercial dependem desses ecossistemas para se reproduzir. Essa poluição, fatalmente, comprometia e ainda compromete os estoques pesqueiros, não só nas regiões produtoras de açúcar, mas em grande parte do litoral brasileiro. Também é importante salientar que a captura de caranguejos e siris sempre foi e continua sendo uma alternativa de alimento para as populações pobres da região – o povo do mangue.

Gabriel Soares de Sousa (1540-1592), explorador e naturalista português, autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, testemunhou a fartura de peixes e crustáceos em um rio da Bahia, numa descrição que pode estendida a todos os rios litorâneos da Região Nordeste:

“Este rio de Pirajá é muito farto de pescado e marisco, de que se mantêm a cidade e fazendas de sua vizinhança, no qual andem sempre sete ou oito barcos de pescar com redes, onde se toma muito peixe, e no inverno, em tempo de tormenta, pescam dentro dele os pescadores de jangadas dos moradores da cidade e os das fazendas duas léguas à roda, e sempre tem peixe, de que todos se remedeiam.”

Nas últimas décadas, com o crescimento vertiginoso das cidades – especialmente da Região Metropolitana do Recife, foram os esgotos domésticos de milhões de pernambucanos que passaram a ser despejados nos rios in natura e em volumes crescentes, completando o conjunto da obra iniciado ainda no século XVI com a chegada da cultura da cana-de-açúcar ao Nordeste brasileiro. Logo, não é de se admirar que o Ipojuca e o Capibaribe tenham posição de estaque entre os rios mais poluídos do Brasil.

Vamos continuar no próximo post.

O RISCO DE EXTINÇÃO DO SURUBIM DO IGUAÇU, OU OS PROBLEMAS DA ICTIOFAUNA ENDÊMICA

Surubim do iguaçu

Os peixes da “família” dos surubins ocorrem nas bacias do rio da Prata, do rio São Francisco e do rio Amazonas. Algumas espécies figuram entre os maiores peixes de água doce do Brasil, ao lado do pirarucu, com exemplares que podem chegar a 100 quilos de peso e atingir mais de 3 metros de comprimento. O surubim é um peixe de couro da família dos pimelodídeos, a mesma dos jaús e dos jundiás, que habita o fundo dos rios e de lagoas. Em muitos lugares do Brasil é conhecido como pintado; na região da bacia Amazônica existe uma espécie muito semelhante ao surubim e também muito apreciada pelos pescadores – o cachara, que ao invés de pintas possui o couro coberto por listas. Segundo os entendidos em culinária, o surubim é um peixe com carne de sabor delicado e sem espinhas, muito apreciado em diferentes culinárias regionais. Em postagem anterior falamos do surubim do São Francisco, um peixe que já foi símbolo deste rio e que está cada vez mais difícil de ser encontrado em consequência das inúmeras agressões ambientais que esta bacia hidrográfica vem sofrendo.

O surubim do Iguaçu (vide foto) é um parente bem distante desta família de peixes – e não estamos falando apenas de uma distância física: com a formação das Cataratas do Iguaçu, num evento geológico há cerca de 22 milhões de anos atrás, as populações de surubins que viviam no rio Iguaçu ficaram isoladas e seguiram um caminho evolutivo próprio, se diferenciando das demais espécies dos outros grandes rios brasileiros. O surubim (Steindachneridion melanodermatum) é o maior peixe do rio Iguaçu, alcançando até 70 cm de comprimento e 15 quilos de peso, ocupando o topo da cadeia alimentar do ambiente. O isolamento do Iguaçu, aliás, teve consequências diretas para a maioria dos peixes que habitam o rio – 80% das espécies são endêmicas, ou seja, são exclusivas deste rio. Esses peixes desenvolveram adaptações fisiológicas específicas para viver nas fortes correntezas do Iguaçu, um tipo de meio conhecido na biologia como ambiente lótico, ou seja, de águas rápidas.

A construção de usinas hidrelétricas em série no rio Iguaçu, a partir da década de 1970, provocou profundas alterações nos ambientes fluviais, causando a interrupção da livre circulação de peixes e prejudicando o seu ciclo natural de vida. Estas barragens criaram obstáculos intransponíveis para as espécies de peixes migradoras e as águas tranquilas represadas, classificadas na biologia como ambientes lênticos, passaram a representar um grande problema para os peixes acostumados a viver em luta permanente contra a correnteza do rio. A soma de todas essas mudanças no habitat dessas espécies endêmicas do rio Iguaçu teve fortes impactos em perda de biodiversidade e passou a representar um sério risco para a sua sobrevivência.

Na década de 1970, quando foram implantadas as primeiras grandes usinas hidrelétricas do rio Iguaçu, os estudos científicos realizados com a fauna aquática, ou por puro interesse do regime militar que dirigia o país na época ou por simples ignorância científica, afirmavam que o Iguaçu era um rio muito pobre em espécies de peixes e que nas suas águas não se encontravam grandes espécies migradoras como as existentes na bacia hidrográfica do rio Paraná como os dourados, pintados, piracanjubas e pacus. Logo, as conclusões científicas destes estudos indicavam que o represamento do rio Iguaçu em diversos trechos não criaria problemas mais sérios para os chamados peixes de piracema. Estudos posteriores comprovaram que o rio Iguaçu não era apenas rico em biodiversidade, mas que também apresentava um alto grau de endemismo nas espécies e que a sequência de barragens que foram construídas ao longo de mais de 600 quilômetros do rio criava sérios riscos para a sobrevivência destas espécies – providências urgentes precisavam ser tomadas.

As características particulares das espécies de peixes do rio Iguaçu passaram a exigir estudos cada vez mais específicos e providencias que iam muito além das preocupações com a construção de escadas para peixes ou a simples captura e soltura dos peixes ou alevinos a montante das barragens. Quando espécies como o surubim são inseridas em um ambiente de águas paradas, os peixes não encontram as condições ambientais em que estavam acostumados a viver, especialmente as fortes correntezas, e muitas vezes não conseguem nem capturar as espécies de peixes menores que compunham a sua dieta usual, correndo sérios riscos de não sobreviver. Estudos mais aprofundados sobre os novos ambientes precisaram ser desenvolvidos, especialmente na busca de afluentes do rio Iguaçu que ainda apresentassem as fortes correntezas e que permitiriam a soltura dos espécimes capturados nas bases dos reservatórios ou dos alevinos criados em tanques de reprodução, com condições naturais muito próximas dos ambientes dos seus habitats originais.

A destruição da vegetação das margens dos rios de toda a bacia hidrográfica do Iguaçu, especialmente pelo avanço das grandes plantações, e também os estragos feitos em grandes extensões das margens pelas cavas de extração de areia, reduziram as antigas áreas de desova e reprodução de inúmeras espécies de peixes endêmicas – isso somado aos obstáculos que foram criados ao longo das últimas décadas com a construção de inúmeras barragens, podem levar inúmeras das espécies únicas do rio Iguaçu a um processo irreversível de redução das populações, com muitas correndo sérios riscos de extinção. Felizmente, algumas notícias recentes indicam que exemplares do surubim do Iguaçu tem sido capturado por pescadores no médio e alto Iguaçu, regiões onde o peixe havia desaparecido há muito tempo – isso pode ser resultado da soltura de dezenas de milhares de alevinos criados em cativeiro. Porém, por mais animadoras que sejam essas notícias, é preciso cautela, pois o ideal é que os peixes consigam viver e se reproduzir por sua própria conta.

Em uma série anterior de postagens, quando falei dos problemas do rio São Francisco, eu tratei do desaparecimento do surubim, peixe que já foi símbolo deste rio. Como consequência disto, muitos restaurantes ribeirinhos passaram a vender pratos preparados com o cachara, uma espécie muito parecida e importada da região Amazônica.

Façamos votos que o cinzento surubim do Iguaçu não tenha o mesmo destino.

AS USINAS HIDRELÉTRICAS DO RIO IGUAÇU

Usina Bento Munhoz

O rio Iguaçu se forma a partir da junção das águas dos rios Atuba e Iraí na divisa entre os municípios de Curitiba e São José dos Pinhais – para ser mais preciso, o ponto exato desta confluência fica embaixo da ponte da rodovia BR-277. Deste ponto até sua foz, nas mundialmente conhecidas Cataratas do Iguaçu, o rio percorre aproximadamente 1.300 km, englobando 109 municípios e onde vivem 4,4 milhões de habitantes – 33% do território e 42% da população do Estado do Paraná. A área englobada pela bacia hidrográfica do rio Iguaçu, com cerca de 62 mil km², inclui alguns dos municípios mais populosos do Estado: Curitiba, Guarapuava, Cascavel e Foz do Iguaçu. Os índios tinham toda a razão ao batizarem o rio com o nome de Y’ Guasu: o “Rio Grande”.

Essa grandiosidade toda, infelizmente, não pode ser traduzida em qualidade ambiental – o Iguaçu é hoje um rio natimorto graças a todo um conjunto de ações antrópicas: são grandes quantidades de esgotos domésticos e industriais, lixo, entulhos, areia e sedimentos que recebe ao atravessar a Região Metropolitana de Curitiba. Mas a natureza consegue ser mais grandiosa ainda e ao longo de um trecho entre 40 e 70 km, conforme a vazão de águas do rio, processos naturais conseguem depurar as águas poluídas. Pouco a pouco, o rio Iguaçu deixa de ser uma grande valeta de esgotos a céu aberto e volta a ser um rio poderoso e cheio de vida, com um grande potencial para o abastecimento de populações, irrigação de plantações e demais usos que se esperam de um corpo d’água em boas condições. Porém, graças ao enorme número de saltos e cachoeiras que existiam ao longo do seu curso, o Iguaçu acabou assumindo, por imposição dos Governantes locais e nacionais, o papel de um dos rios com maior aproveitamento para geração de energia elétrica da Região Sul do Brasil.

A possibilidade de se aproveitar as águas do rio Iguaçu para a geração de energia elétrica remonta ao final do século XIX, quando Curitiba passou a contar, no ano de 1891, com o serviço privado de iluminação pública com lâmpadas elétricas em várias ruas da cidade e com a eletricidade gerada por uma usina termelétrica. Como já havia acontecido na época em outras cidades brasileiras, como no Rio de Janeiro, a geração de eletricidade em usinas termelétricas era problemática e cara, devido aos altos custos e as dificuldades para a importação do carvão. Após inúmeras reclamações da população devido a irregularidade da iluminação e as constantes queimas de lâmpadas, este serviço foi transferido para a administração direta pela Prefeitura de Curitiba. Com o aumento da demanda por energia elétrica, o Governo do Paraná passou a estudar a partir de 1907 a possibilidade de conceder o Salto Caiacanga no rio Iguaçu, no atual município de Porto Amazonas, para exploração por uma empresa privada, que construiria uma usina hidrelétrica no local. As discussões e os estudos para a realização desta obra se estenderam por vários anos sem que se chegasse a um termo final. Enquanto isso, outras iniciativas empreendedoras eram levadas avante em outras localidades: em 1910 foi construída a Usina de Serra da Prata em Paranaguá, que funcionou até a década de 1970, e em 1911 foi inaugurada a Usina de Pitangui em Ponta Grossa.

Foi a partir do final da década de 1960, no período dos Governos Militares, que a exploração do potencial hidrelétrico dos rios brasileiros passou a ser visto como prioridade e foi iniciado o ciclo de construção das grandes usinas hidrelétricas – Itaipu, no rio Paraná, na divisa entre o Brasil e o Paraguai, que durante mais de quarenta anos ostentou o título de maior usina hidrelétrica do mundo, é um dos símbolos mais icônicos deste período. O rio Iguaçu passou a ocupar um lugar de destaque na política energética do país e seria palco para a construção de usinas hidrelétricas “em série”.

Na região do Baixo rio Iguaçu foram construídas as Usinas Hidrelétricas de Salto Osório, com potência de 1.078 MW e inaugurada em 1975, e Salto Santiago, com potência de 1.420 MW e inaugurada em 1980. A primeira grande usina hidrelétrica do rio Iguaçu foi Foz de Areia, rebatizada depois com o nome do ex-Governador Bento Munhoz da Rocha Neto (vide foto), com potência de 1.676 MW e inaugurada em 1979.

Em 1992 entrou em operação a Usina Salto Segredo, a primeira grande usina nacional a ser precedida por um estudo de impacto ambiental. Em Salto Caxias foi inaugurada uma outra grande hidrelétrica em 1999, com capacidade instalada de 1240 MW e rebatizada posteriormente com o nome do ex-Governador José Richa. Em 2013, quando todo o potencial de geração de energia hidrelétrica do rio Iguaçu parecia estar completamente saturado, foi iniciada a construção da Usina de Baixo Iguaçu, com produção a fio d’água e sem precisar do represamento do rio, com potência instalada para a produção de até 350 MW.

Se você prestou atenção neste último parágrafo, percebeu que a primeira vez que foi feito um estudo sócio ambiental completo antes da execução das complexas obras para a construção de uma usina hidrelétrica no rio Iguaçu foi em 1992 – antes disso, três grandes usinas foram construídas no rio, sem que as autoridades se preocupassem com os impactos que seriam gerados para as populações ribeirinhas, que acabaram deslocadas a força para outras regiões, e também para a flora e a fauna do rio Iguaçu. Eu costumo imaginar um importante general, com muitas estrelas no ombro, correndo o dedo sobre um mapa topográfico do vale do rio Iguaçu e ordenando: “- construam uma usina hidrelétrica aqui, outra ali e uma terceira acolá!”. Um bando de subalternos balançando a cabeça e respondendo: “- Sim Senhor…”

Todo um conjunto de grandes e médias usinas hidrelétricas, entre outras grandes obras de infraestrutura, que foram construídas no período e sob estas “condições”, se mostrariam fundamentais para alavancar o Milagre Econômico Brasileiro da década de 1970 e muito do desenvolvimento econômico que vivemos até os dias de hoje. Porém, como imagino todos devam saber, é necessário que se encontre um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento econômico, o bem-estar social e a preservação ambiental.

Finalizando, é preciso incluir nessa lista a Usina Hidrelétrica de Salto Grande do Iguaçu, que foi inaugurada em 1967 e que tinha uma potência de 15,2 MW. Essa unidade, que atualmente está em ruínas cobertas pelas águas do rio Iguaçu, operou por pouco mais de dez anos e foi desativada após a inauguração da Usina Hidrelétrica Bento Munhoz da Rocha Neto em 1980. Foi um leitor do blog que nos deu essa informação.

No próximo post vamos falar dos impactos destas obras grandiosas na ictiofauna endêmica e muito particular do rio Iguaçu.

A EXTRAÇÃO DE AREIA NO RIO IGUAÇU, OU NÃO É SÓ A POLUIÇÃO POR ESGOTOS QUE DESTRÓI UM RIO

Cavas no Rio Iguaçu

“A areia é um dos sedimentos mais importantes, pelas suas múltiplas utilidades, para a construção civil – ela é essencial para a produção de argamassa para o assentamento de tijolos e blocos; para chapisco, emboço e reboco de paredes; como aglomerado na produção de peças de concreto, vigas, colunas e lajes; como matéria prima para a produção dos diversos tipos de vidro, usados não apenas na construção civil, mas em múltiplos produtos consumidos pela nossa sociedade.”

Esse longo parágrafo faz parte de uma postagem anterior, publicada no mês de julho, onde tratei dos problemas ambientais criados pelas cavas de extração de areia no rio Paraíba do Sul (que assumiu o papel de fornecedor após a extração de areia nas margens do rio Tietê se tornar inviável com o crescimento da mancha urbana de São Paulo), areia esta que abastece a indústria da construção civil, especialmente nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas. Mudando a latitude alguns graus mais para o Sul, encontraremos exatamente os mesmos problemas na Região Metropolitana de Curitiba e nas margens do rio Iguaçu, inclusive porque a história geológica das duas Regiões é muito similar. O rio Iguaçu, assim como o Tietê e Paraíba do Sul, há milhões de anos vem transportando a areia e os sedimentos resultantes da erosão das montanhas da Serra do Mar, montanhas que no passado já foram tão altas como a Cordilheira do Andes. Toda essa massa de areia e sedimentos se espalhou e se acumulou por extensas áreas do território brasileiro, mas estão mais acessíveis para a exploração nas margens e várzeas destes rios.

Na Região Metropolitana de Curitiba, a exploração de areia e argila vem de cavas em áreas de diversos rios, principalmente das várzeas do rio Iguaçu. Existem aproximadamente 40 pontos de extração de areia oficialmente registrados na Região Metropolitana, de onde são extraídos 100 mil metros cúbicos de areia a cada mês. Porém, ao longo de várias décadas, antigas cavas de extração de areia, a grande maioria clandestinas, foram abertas, exploradas e depois abandonadas, sem que se fizesse nenhum trabalho de recuperação ambiental – se apresentam hoje como imensas crateras cheias de água, que representam riscos ao meio ambiente e as populações: nos últimos 10 anos, foram registradas 13 mortes de pessoas por afogamento nas cavas da Região Metropolitana de Curitiba.

Nestas últimas postagens tenho falado muito dos problemas da poluição no rio Iguaçu, especialmente dos problemas ligados ao lançamento de esgotos de maneira clandestina nas águas dos inúmeros rios e córregos que cruzam as cidades da Região Metropolitana e que acabam na calha deste rio.  Porém, não são apenas os esgotos os responsáveis pela degradação do rio – as cavas de extração de areia também contribuem com sua cota de destruição das águas. De acordo com dados de ONGs – Organizações Não Governamentais, 40% da calha do rio Iguaçu dentro da Região Metropolitana de Curitiba está cheia de cavas abandonadas e apresentando inúmeros problemas de degradação ambiental. Estes problemas começam com a remoção da mata das margens, que todos sabem funcionar como uma barreira contra a entrada de sedimentos e lixo na calha do rio; essa vegetação marginal também tem um importante papel ecológico para as espécies que vivem nas águas dos rios – elas ajudam a formar pequenas lagoas e áreas de remanso, protegidas da correnteza, onde as espécies aquáticas – peixes, anfíbios, répteis e até mesmo aves, se reproduzem. As espécies se valem, conforme sua própria fisiologia, das raízes submersas, das áreas de solo protegidas pela vegetação e dos altos galhos dos arbustos e das árvores. A destruição das matas e a escavação das áreas nas margens altera completamente o ciclo de vida destas espécies e, pior, o assoreamento que é provocado na calha do rio, entre outros gravíssimos problemas, soterra as comunidades bênticas ou bentônicas do fundo rio – nestas comunidades vivem plantas, vermes, moluscos e crustáceos de tamanhos variados (a maioria muito pequena e microscópica). Essas criaturas formam a base da cadeia alimentar (também chamada de cadeia trófica) do rio e sustentam todas as formas de vida superiores – inclusive a dos seres humanos (especialmente os ribeirinhos) que se alimentam com os peixes pescados no rio.

De acordo com a legislação vigente, a extração de areia só pode ser feita a partir de 500 metros de distância das margens dos rios e as empresas mineradoras são responsáveis pela recuperação ambiental das áreas após o esgotamento ou a impossibilidade da escavação prosseguir (a partir de certa profundidade, a retirada da areia fica mais difícil e existe o risco do desmoronamento das paredes da cava). Nem a distância mínima das margens dos rios nem a recuperação das áreas degradadas são respeitadas pelos exploradores, que alegam que não tem outro material para usar no preenchimento das cavas após a extração da areia. Duas opções rápidas de materiais de preenchimento que me vêm à memória: as montanhas de entulhos que são geradas diariamente e que, em grande parte das vezes, acaba descartada de maneira irregular em áreas ermas das cidades e os sedimentos resultantes de escavações de obras e de serviços de terraplenagem – lembrando que estes resíduos são gerados pela indústria da construção civil, a mesma que consome os milhões de metros cúbicos de areia retirados das cavas das margens dos rios.

Concluindo, tenho ainda duas observações: primeira – os resíduos da construção civil podem ser reciclados, produzindo uma areia de boa qualidade: esta areia não pode ser usada na fabricação de concreto para fins estruturais (a areia possui contaminantes que reduzem a resistência final do concreto), porém é ideal para a fabricação de peças estruturais e argamassa para assentamento de tijolos e blocos, além de chapisco, emboço e reboco; a reciclagem desta areia vai evitar a extração do agregado na natureza e gerar inúmeros benefícios ambientais. Segundo – um exemplo do reaproveitamento ecologicamente correto dos sedimentos de escavações é a Ilha de Notre Dame, na cidade de Montreal, Canadá, onde encontramos um charmoso parque: a ilha foi formada artificialmente a partir dos despejos das rochas e sedimentos da escavação dos túneis do metrô da cidade nas décadas de 1960 e 1970.

Com boa vontade e criatividade, é possível resolver e remediar muitos dos atuais problemas ambientais. E rios como o Iguaçu serão eternamente gratos.