
Todo santo dia, lendo as notícias nos jornais e nos websites, somos bombardeados com um grande número de más notícias na área ambiental. São informações sobre o aquecimento global, guerras, desastres provocados por chuvas, incêndios florestais, riscos de extinção de espécies, entre muitas outras tragédias.
Raramente, nos deparamos com boas e inspiradoras notícias nessa área. Hoje é um desses dias – circulou ontem uma notícia que fala da descoberta de um importante refúgio de raias-gigantes, uma espécie marinha ameaçada de extinção, num dos locais mais improváveis que se poderia imaginar: a poluída Baía da Guanabara.
A espécie em questão é a raia-borboleta (Gymnura altavela), animais que podem chegar a 3 metros de envergadura e são classificadas como Criticamente em Risco na Natureza. De acordo com informações do ICMBIO – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, a população dessa espécie sofreu um declínio de 95% na natureza.
A principal ameaça as raias-borboletas é a prática da pesca de arrastro, técnica que acaba capturando esses animais e outras espécies que não tem valor comercial. Os animais mortos são simplesmente descartados nos mares ou nas praias.
O refúgio das raias-borboletas fica em plena região central da cidade do Rio de Janeiro, no trecho da Baía da Guanabara entre a cabeceira do Aeroporto Santos Dumont e a Praça XV. A descoberta foi feita pelo biólogo e diretor do IMU – Instituto do Mar Urbano, Ricardo Gomes, que há mais de trinta anos mergulha nessa região.
O biólogo relata que já fotografou e filmou mais de cem animais nadando juntos nesse trecho em uma única noite. Essa grande concentração de animais dessa espécie fortemente ameaçada vivendo num local marcado pela intensa poluição é um fato que vem surpreendendo os biólogos.
Um dos pontos com a maior concentração de arraias é a cabeceira do Aeroporto Santos Dumont, onde foi construída uma grande base de pedra dentro da Baía da Guanabara como extensão da pista. Essa estrutura acabou se transformando numa espécie de recife artificial.
Segundo os pesquisadores, esse trecho abriga outras espécies como garoupas, robalos, sargos-de-beiço, marimbas e moreias, além de espécies ornamentais como os parus e os peixes-frades. Qualquer pessoa que conheça de perto a poluída Baía da Guanabara ficará surpreso com essa informação.
No total, os pesquisadores já comprovaram a presença de sete espécies de raias (também chamadas de arraias) na Baía da Guanabara, o que a coloca na quinta posição mundial entre as baías com maior diversidade dessas espécies de peixes. E é justamente no trecho da cabeira da pista do aeroporto um dos principais locais de reprodução dessas espécies.
Os pesquisadores ainda não têm uma explicação para esse fato. Entre outras coisas, podemos supor que a ausência de pescadores praticando pesca de arrastro nesse trecho possa estar favorecendo o refúgio da espécie. A própria poluição das águas da Baía da Guanabara pode estar dando a sua contribuição – espécies que predam esses animais podem estar evitando o local, o que está beneficiando as raias-borboletas.
A Baía da Guanabara ocupa uma área com aproximadamente 400 km² e acumula um volume de água com cerca de 3 bilhões de m³. A área de influência direta é bem maior e ocupa algo em torno de 4.000 km², onde estão incluídos os maciços e as colinas da Serra do Mar, a Baixada Fluminense, extensas áreas de manguezais e uma rede hidrográfica com aproximadamente 50 rios e córregos que despejam, em média, 200 mil litros de água por segundo na Baía da Guanabara. Nessa conta se inclui o despejo de cerca de 10 mil litros de esgotos por segundo.
Essa grande região incorpora um total de 16 municípios, sendo que 10 estão totalmente inseridos na bacia hidrográfica (Duque de Caxias, Mesquita, São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, São Gonçalo, Magé, Guapimirim, Itaboraí e Tanguá) e 6 de forma parcial (Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu, Rio Bonito e Petrópolis). Nesta região vive 80% da população do Estado do Rio de Janeiro, estimada em 17 milhões de habitantes de acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Em áreas mais urbanizadas das cidades, tubulações de emissários de esgotos se juntam aos cursos naturais, poluindo as águas de forma difusa. Como se já não bastasse toda a poluição lançada por via hídrica, a Bacia da Guanabara também recebe o lançamento diário de dezenas de toneladas de resíduos sólidos dos mais diferentes tipos, que descartados de maneira irregular em ruas, avenidas e em terrenos baldios, acabam carreados para dentro de rios e córregos, alcançando assim as águas da Baía.
A situação da Baía da Guanabara só não é mais crítica devido ao seu contato com o Oceano Atlântico, que com suas correntes marinhas consegue renovar completamente as águas da Baía a cada duas semanas, Mesmo com toda esta ajuda da natureza, a qualidade das águas na Baía não é das melhores e a maioria das 44 praias é considerada imprópria para banhos. Existem alguns pontos onde a poluição das águas é considerada crítica: a Península do Caju, o Canal do Fundão e o Porto do Rio de Janeiro, além da foz dos rios Irajá, Sarapuí e Iguaçu. O refúgio das raias-borboletas é justamente um desses locais em situação mais crítica.
Além de toda essa poluição ambiental das águas, os animais correm um outro risco ainda mais grave. Existem diversos estudos para a ampliação da pista do Aeroporto Santos Dumont. O projeto prevê a realização de obras para ampliação da base de pedras localizada nas águas da Baía da Guanabara, justamente o local de reprodução e maior concentração dos espécimes.
Os impactos diretos dessa obra poderão perturbar dramaticamente o habitat dos animais, além alterar a dinâmica das correntes marítimas nesse trecho da Baía, reduzindo a velocidade de renovação das águas e da circulação de nutrientes. As autoridades ambientais precisarão ficar atentas a todos esses possíveis impactos.
Apesar da tão sonhada despoluição da Baía da Guanabara não ter saído papel – ela foi prometida para as vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, a descoberta desse refúgio de biodiversidade marinha nós enche de esperança.