
Na última postagem falamos rapidamente dos problemas no abastecimento de água para a população de São Paulo e de cidades vizinhas da Região Metropolitana. As abundantes fontes de água dos primeiros tempos da cidade – algumas citações antigas chegam a falar de 2 mil riachos, ribeirões e rios no município, foram destruídas ao longo do crescimento da cidade.
Até a década de 1990, grande parte da população da cidade era obrigada a conviver com um sistema de rodízio no abastecimento de água. Em regiões mais distantes da área central – a famosa periferia da cidade, o abastecimento dependia da escavação de poços semiartesianos. Esse foi o caso da casa da minha família que, até meados da década de 1970, usou água de poço.
A solução para essa crise crônica de água na cidade começou a ser desenhada ainda na década de 1960, época em que o Governo do Estado de São Paulo resolveu construir um grande sistema produtor de água para atender as populações das cidades da Região Metropolitana de São Paulo e também de grandes cidades do interior como Campinas.
Esse grande projeto, que recebeu o nome de Sistema Cantareira, foi concluído no início dos anos de 1980 e, gradativamente, passou a permitir a universalização do abastecimento de água da população paulistana. Redes de distribuição de água passaram a chegar aos bairros mais distantes, dando a sensação de que todos os problemas relativos à água estavam resolvidos.
O Sistema Cantareira passou a responder por 70% de toda a água consumida pela população da Região Metropolitana de São Paulo e de parte da população de cidades da região de Campinas. Essa alta dependência de um único sistema produtor de água cobraria um alto preço no futuro.
Em 2014, uma grande seca assolou a região dos principais mananciais que formam o Sistema Cantareira, o que desencadeou uma grande crise no abastecimento de água de milhões de pessoas. Essa crise forçou a adoção de um rigoroso racionamento de água por parte da população até o início de 2016.
Passada essa crise histórica que marcou profundamente a vida dos paulistanos, as preocupações com o nível do Sistema Cantareira viraram uma espécie de “rotina” para a população metropolitana. Sites que divulgam a situação dos mananciais foram criados e muita gente – como é o meu caso, consultam as informações frequentemente.
Um detalhe que vem saltando aos olhos desde a grande crise hídrica 2014-2016, é o fato do Sistema Cantareira nunca mais ter atingido a cota máxima dos reservatórios. Aliás, a última vez que o Sistema ficou completamente cheio foi em 2010. Desde então, raramente o índice de 60% da capacidade máxima é atingido.
As nascentes dos principais rios formadores do Sistema Cantareira ficam na Serra da Mantiqueira, um conjunto de montanhas que se estende por cerca de 500 km ao longo da divisa dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A região concentra uma grande infinidade de nascentes e afloramentos de água, que formam importantes rios da região Sudeste. O nome da região tem origem na expressão tupi-guarani amantikir, que pode ser traduzido como “a montanha que chora”.
Até o início do século XIX, a Serra da Mantiqueira era coberta pela luxuriante vegetação da Mata Atlântica, um complexo sistema vegetal que se estendia do Norte do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte, com alguns trechos entrando pelo interior do continente e chegando até o Norte da Argentina e Leste do Paraguai.
Conforme já tratamos em inúmeras postagens aqui do blog, a Mata Atlântica vem sofrendo agressões ambientais desde o início da colonização do Brasil. Primeiro foram os grandes canaviais do Nordeste, que praticamente dizimaram o bioma na Região. Uma segunda onda de destruição veio na esteira da produção da produção do café, cultura que marcou o início dos desmatamentos da Serra da Mantiqueira a partir de meados do século XIX.
Outra fonte importante de pressão sobre os recursos madeireiros da Serra da Mantiqueira veio com o desenvolvimento da indústria metalúrgica no Estado de Minas Gerais. A produção de ferro, aço e de outros metais depende da geração de calor em altos-fornos. Sem contar com fontes de carvão mineral, os fornos de Minas Gerais foram alimentados com carvão de origem vegetal – algo como 230 mil km2 de florestas de Mata Atlântica viraram carvão no Estado.
Nas últimas décadas, os desmatamentos na Serra da Mantiqueira vêm atingindo fragmentos de remanescentes florestais, pressionados pela expansão de campos para a criação de gado leiteiro e de plantações. Essa pressão sobre o que restou das matas está se refletindo numa diminuição ainda maior da vazão das antigas fontes de água, inclusive de muitos rios formadores do Sistema Cantareira.
Os mananciais que formam Sistema Cantareira, entretanto, não são os únicos que estão sendo pressionados pela devastação ambiental. Represas dos Sistemas Guarapiranga, Rio Grande e Alto Tiete, citando alguns exemplos, sofrem de males muito parecidos.
Começo falando da Guarapiranga, represa localizada na Zona Sul do município de São Paulo e que é uma espécie de símbolo aqui do meu bairro (aliás, eu tenho uma visão de parte da represa pela janela aqui de casa). A Guarapiranga foi construída no início do século XX para funcionar como uma regularizadora da vazão do rio Tiete para fins de geração de energia elétrica, uma função que manteve até 1928, quando foi reclassificada como manancial de abastecimento de água.
A Guarapiranga foi vítima do crescimento descontrolado da mancha urbana da cidade de São Paulo, um processo que ganhou muita força a partir do início da década de 1960. Grandes indústrias de autopeças se instalaram na região, o que criou uma forte demanda por lotes populares para os milhares de trabalhadores que foram atraídos de todos os cantos do país. Os terrenos baratos das áreas dos mananciais da represa passaram a ser loteadas e transformados em bairros populares. A foto que ilustra essa postagem dá uma boa ideia da concentração de imóveis ao redor da represa.
Além da destruição das matas da região, esse verdadeiro “mar de casas” passou a despejar grandes volumes de esgotos in natura nos córregos e riachos formadores da Guarapiranga. Além da redução do volume de água, a represa passou a conviver com altos níveis de poluição por esgotos.
Esse é exatamente o mesmo drama da represa do Rio Grande. Essa represa foi formada por um dos braços da represa Billings, que foi isolado por uma barragem para ficar protegido da grande poluição das águas por esgotos. A Billings foi construída com o objetivo de gerar energia hidrelétrica na década de 1930, e poderia representar uma importante fonte para o abastecimento de água da população da Região Metropolitana. O crescimento das cidades em seu entorno, desgraçadamente, transformou a represa numa grande vala de esgotos a céu aberto.
Entre todos os mananciais da Região Metropolitana de São Paulo, o único que está em boas condições é a represa de Cotia. Detalhe – essa represa fica no meio de uma grande área de mata preservada.
As chuvas são importantes para garantir o abastecimento de água da população. Porém, preservar matas, especialmente nas áreas de nascentes e ao redor das represas é essencial. Está aí o exemplo de São Paulo para provar isso…