
O pica-pau-bico-de-marfim (Campephilus principalis), espécie que inspirou o personagem Pica-Pau dos desenhos animados, passou a ser considerada uma espécie extinta desde o último dia 29 de setembro. Desde 1944, não ouve nenhum avistamento do animal, apesar das intensas buscas realizadas em matas e florestas dos Estados Unidos por cientistas, observadores de pássaros e público em geral.
Dentro de 60 dias, a contar da data do informe do Fish and Wildlife Service – Serviço de Peixes e Vida Selvagem dos Estados Unidos, na sigla em inglês, a espécie será considerada oficialmente extinta caso não surjam evidencias ou informações que indiquem a existência de algum espécime vivo. É uma perda lastimável para a vida selvagem e também para a cultura popular mundial.
Mas, afinal de contas: o que é que se perde com o desaparecimento para sempre de um simples “passarinho”?
Se perde muito – nenhuma espécie animal ou vegetal vive isoladamente. Diferentes espécies mantem relações de benefício e de associação para a sobrevivência mútua. Uma árvore, por exemplo, pode abrigar diversas outras plantas – bromélias e orquídeas por exemplo, que por sua vez alimentam diversas espécies de insetos, que por sua vez são predados por aves. Se a árvore cair ou for cortada, as perdas se estenderão a todas as outras espécies associadas. Essa relação entre as árvores e as plantas é chamada de inquilinismo.
As inter-relações entre as espécies recebem diferentes classificações – alguns exemplos:
Mutualismo: ocorre quando duas espécies são beneficiadas e a associação garante a sobrevivência de ambas. Um caso clássico é o dos líquens, onde uma alga e um fungo que se associaram, o que garantiu a sobrevivência mútua;
Protocooperação: nesse caso, indivíduos de espécies diferentes vivem de modo interdependente sem prejuízo a nenhuma das espécies. Um exemplo são os pássaros que se alimentam de carrapatos que atacam os grandes mamíferos;
Colônias: são os casos de indivíduos da mesma espécie ou de espécies diferentes que vivem agrupadas para proteção e benefício mútuo;
Comensalismo: Nesse caso, apenas uma das espécies é beneficiada, porém, é gerado um benefício indireto para outras espécies. É o caso dos urubus que se alimentam de restos de animais mortos, o que mantém o ambiente saudável para outras espécies;
Além dessas relações harmônicas, onde nenhuma das espécies é prejudicada, existam as chamadas relações não harmônicas. Exemplos:
Competição: Nesse caso, diferentes espécies disputam recursos limitados como alimentos, territórios, parceiros sexuais e luminosidade. Esse é o típico processo que beneficia os indivíduos mais fortes e melhor adaptados;
Canibalismo: uma relação que envolve indivíduos da mesma espécie, onde uma mata o outra para se alimentar, a exemplo da fêmea do louva-a-deus ou da aranha viúva-negra;
Predatismo: É a relação entre espécies diferentes onde uma delas caça outra, no caso de carnívoros, ou de herbívoros que se alimentam de plantas como bois, cavalos e gafanhotos.
Os pica-paus se enquadram no grupo dos predadores – essas aves são ávidas comedoras de insetos. Elas usam seus fortes bicos para atacar formigas e cupins que vivem nos troncos de árvores. Atuando como um verdadeiro formão, ferramenta muito usada pelos marceneiros, o bico da ave é usado para arrancar a casca e para furar a madeira, expondo os insetos que são capturados pela língua grudenta.
Além de insetos, os pica-paus também se alimentam de frutas, nozes e castanhas. Algumas espécies de regiões de clima temperado, inclusive, usam os buracos que foram abertos nos troncos das árvores para estocar nozes e bolotas de carvalho para consumo nos meses de inverno. Aqui no Brasil, a gralha-azul tem um comportamento muito parecido.
A gralha-azul (Cyanocorax caeruleus) é uma ave com aproximadamente 40 cm de envergadura, com coloração das penas do corpo de um azul vivo e com a cabeça, a parte frontal do pescoço e partes do peito na cor preta (vide imagem). Essas aves costumam viver em pequenos bandos, se alimentando de frutas, insetos e, especialmente, dos pinhões das araucárias, uma espécie de pinheiro nativo das regiões de clima subtropical do Sul e Sudeste do Brasil, além de países vizinhos como a Argentina e o Uruguai.
A semente da araucária, o pinhão, é um alimento extremamente importante na culinária da região Sul e também em extensas áreas do Estado de São Paulo. Ele pode ser comido puro após ser cozido em água ou ser incluído em inúmeras receitas de carnes, sopas, pães e bolos, entre uma infinidade de receitas. Os índios das etnias do grupo linguístico jê, que possuíam diversas tribos na região Sul do Brasil, eram grandes comedores de pinhão e, com a chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis, acabaram ensinando muitos desses hábitos alimentares aos recém chegados.
Muitos animais como pacas e cotias também consomem o pinhão. Assim que caem das araucárias, os pinhões apresentam uma castanha com enorme acidez e são necessários vários dias até que a semente “amadureça” e fique apetitosa para o consumo. Um dos mais ávidos comedores de pinhão da natureza são a gralhas-azuis, aves que desenvolveram uma estratégia especial para armazenar as sementes.
Durante os meses de outono, época em que as araucárias produzem os pinhões, as gralhas-azuis coletam os pinhões e os “estocam” em áreas delimitadas do solo ou os encravam em troncos caídos no solo, criando assim uma reserva de alimentos para o período do inverno. Esse período em que os pinhões ficam estocados também ajuda a resolver o problema da acidez da semente.
É aqui que desponta a importância ambiental da relação entre as gralhas-azuis e as araucárias: muitos desses pinhões acabam esquecidos pelas aves e germinam, produzindo novos exemplares de araucárias. Ou seja, as gralhas-azuis são as grandes plantadoras de araucárias, a mesma relação que algumas espécies de pica-paus de países como os Estados Unidos e do Canadá mantém com árvores como os carvalhos e nogueiras.
Infelizmente, esse fantástico mecanismo de interdependência entre as araucárias e as gralhas-azuis, um processo evolutivo de milhões de anos, está seriamente ameaçado – a Mata das Araucárias, um subsistema florestal da Mata Atlântica, está reduzida a cerca de 4% da sua antiga área original. Com a destruição do seu habitat e sem um dos seus mais importantes alimentos – o pinhão, as populações de gralha-azul encontram-se ameaçadas de extinção e está sendo cada vez mais difícil encontrar grupos dessas aves livres na natureza.
A extinção do pica-pau-bico-de-marfim, fatalmente, trará graves impactos em outras espécies que compartilham o mesmo nicho ecológico – populações de insetos que eram predadas pelas aves poderão aumentar sem controle e passar a ameaçar outras espécies. Árvores que dependiam das aves para dispersas suas sementes, ficarão com seus territórios limitados ou terão a sobrevivência ameaçada. Como esses pica-paus não eram vistos já há várias décadas, esses impactos já podem estar ocorrendo silenciosamente.
Concluindo: não foi apenas uma espécie de pássaro que desapareceu – inúmeras outras espécies associadas poderão seguir brevemente pelo mesmo caminho…