
Na nossa última postagem apresentamos um quadro geral da influência econômica e política que a China vem exercendo em todo o continente africano. Essa influência começou timidamente no início da década de 1960, quando os chineses ajudaram a financiar a construção de uma ferrovia ligando a Tanzânia a Zâmbia. Hoje, a China tem uma forte presença em todos os 54 países que formam a África.
A maior parte dos investimentos financiados por capitais chineses estão concentrados em infraestrutura, especialmente rodovias, ferrovias, portos e centrais de geração de energia elétrica. Também não é segredo para ninguém que a China vê o continente africano como um futuro celeiro agrícola – já existem muitos projetos de agricultura irrigada em andamento e, pelo andar da carruagem, virão muitos outros mais.
Para exemplificar a quantas anda a influência da China na África: o Governo do Egito está realizando um fabuloso investimento para a construção de uma nova capital para o país. Considerado por muitos analistas internacionais como “megalomaníaco”, esse grande projeto poderá consumir até US$ 250 bilhões. E quem está financiando e/ou vai financiar a maior parte das despesas? A China, é claro.
Somente para o desenvolvimento da fase inicial do projeto, os custos estão estimados em US$ 45 bilhões – os chineses sozinhos estão desembolsando US$ 32 bilhões através de inúmeras linhas de crédito governamentais. Um grupo de bancos chineses vai desembolsar outros US$ 3 bilhões para a construção do centro financeiro da nova capital.
O grande canteiro de obras já em andamento fica a meio caminho entre a cidade do Cairo e o Porto de Suez. Entre as obras iniciais destacam-se a construção de hotéis, residências e centros de convenções. De acordo com os planos do Governo, a nova capital, que ainda não tem nome, ocupará uma área total de 750 km², praticamente o mesmo tamanho da cidade de Nova York.
Na parte central da cidade está prevista a construção de uma grande área verde com o dobro do tamanho do Central Park de Nova York, um palácio presidencial sete vezes maior que a Casa Branca, sede do Governo norte-americano, além de abrigar o edifício mais alto de toda a África. Também estão previstos inúmeros lagos por toda a cidade e uma grande usina de geração fotovoltaica para fornecer energia elétrica limpa.
O aeroporto da nova capital está sendo pensado para ser o maior de toda a África e um dos maiores do mundo. A mania de grandeza também se mostra na ideia de se construir um imenso distrito voltado para o entretenimento, onde se preveem investimentos de US$ 20 bilhões. Como o padrão de referência dos egípcios parece ser os Estados Unidos, esse distrito terá um tamanho equivalente a quatro vezes ao da Disneylândia.
O mega projeto foi anunciado em 2015, pelo líder do Egito, o General Abdel Fattah Saeed Hussein Khalil as-Sisi. A nova cidade será a capital administrativa do país, abrigando além do palácio presidencial os ministérios, os comandos militares, sedes de empresas públicas (que são muitas), entre outras autarquias e órgãos governamentais.
O Governo espera assentar na cidade até 6 milhões de egípcios, desafogando a gigantesca cidade do Cairo onde já vivem perto de 20 milhões de pessoas, 1/5 da população do Egito. Considerada a segunda cidade com ar mais poluído do mundo – superada apenas por Nova Déli na Índia, o Cairo poderá chegar aos 40 milhões de habitantes nos próximos 30 anos.
Os problemas urbanos, sociais e econômicos da cidade, que já são gravíssimos, passarão para níveis absolutamente surreais. A imensa maioria dos egípcios sobrevive com uma renda equivalente a R$ 7,00 por dia, o que nos dá uma ideia dos problemas enfrentados pela população. O baixo poder aquisitivo da população, aliás, poderá transformar a nova capital em uma terra acessível somente para os grupos econômicos mais abastados do país.
Para estimular a migração da população, o projeto prevê a construção de centenas de mesquitas, estádios de futebol, rodovias de alta velocidade, além de milhares de apartamentos de alto padrão cercados por grandes áreas verdes. Inclusive, o cuidado com a concepção das habitações para a população é um dos destaques do projeto.
Escritórios de arquitetura e de design italianos estão trabalhando em conjunto com arquitetos egípcios no projeto dos edifícios. O projeto básico é formado por edifícios baixos no formato de cubo, com arestas de 30 metros e dotados de apartamentos com grandes varandas. Esses prédios receberão jardins verticais a exemplo de projetos já existentes em cidades como Milão, na Itália, e Paris, na França. Ao redor de cada prédio serão plantadas cerca de 350 árvores e 14 mil arbustos de espécies diferentes. já foram selecionadas mais de 100 espécies de plantas, todas adaptadas ao clima local.
Saindo um pouco do mundo dos “contos de fadas”, a ideia do Governo destoa completamente da história de um país que, desde a independência total do Reino Unido em 1954, vem vivendo entre altos e baixos na economia e na política. Nesse período, o país se envolveu em duas guerras contra Israel – a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kippur, em 1973; um conflito internacional por causa do Canal de Suez, já teve um presidente assassinado e sofreu diversos golpes militares.
Bem recentemente, em 2016, o Egito precisou pedir um empréstimo de US$ 12 bilhões ao FMI – Fundo Monetário Internacional, a fim de conseguir fechar suas contas externas. Para piorar a situação, a economia do país vem registrando déficits fiscais da ordem de 10% do PIB – Produto Interno Bruto, nos últimos anos.
Relembrando a recente e sempre tumultuada história do Egito, o General as-Sisi assumiu o comando do país em um golpe de Estado que derrubou o então presidente eleito Mohamed Morsi em 2014. Em 2018, as-Sisi foi reeleito para um novo mandato de 4 anos, tendo obtido a “incrível” marca de 97,08% do total de votos. Analistas internacionais acusaram essas eleições de fraudulentas.
O General as-Sisi chefiava o alto comando militar do Egito desde 2012, e conta com forte apoio dos oficiais militares do país. Em reconhecimento a todo esse apoio, militares de altas patentes foram indicados pelo Presidente para comandar a grande massa de empresas públicas do país, onde se incluem desde empresas de transportes e de geração de energia elétrica até hotéis e empresas de turismo. Dentro de uma estrutura governamental com essas características não há espaços para vozes dissonantes e/ou críticas ao projeto da nova capital do país.
O apoio da China ao polêmico projeto tem razões de ordem geopolítica – o Canal de Suez é, ao lado do Canal do Panamá e do Estreito de Malaca, uma das artérias vitais ao seu comércio internacional. Para os que não conhecem a história local, o então presidente Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez em 1957, desencadeando uma enorme crise internacional. Na prática, a concessão do Canal ainda pertencia o Reino Unido.
O Estado de Israel, com apoio de tropas da França e da Inglaterra, realizou uma rápida intervenção militar, o que, inclusive, custou ao Egito a perda temporária da região da Península do Sinai para os israelenses. A ONU – Organização das Nações Unidas, precisou intervir com uma Força de Paz, que contou inclusive com a participação de militares brasileiros, para assegurar o livre tráfego do comércio internacional pelo Canal de Suez.
Além de toda uma série de coisas podem dar muito errado em um projeto dessa magnitude – o Egito já tentou criar 8 cidades sem sucesso, o volume dos empréstimos que estão sendo contraídos pelo país poderá inviabilizar a economia no médio prazo. As montanhas de dinheiro que os chineses estão emprestando ao país, mais cedo ou mais tarde, precisarão começar a ser pagas. E o valor de cada uma das parcelas é bastante salgado para o tamanho da economia do Egito.
A história antiga do Egito está cheia de grandes faraós que sonharam com grandes palácios e cidades, mas que fracassaram de forma retumbante em seus planos. Esperemos que o moderno Egito não repita os mesmos erros.
Para finalizar, deixo a seguinte reflexão: se a China tem cacife político e econômico para bancar um projeto que mudará completamente os rumos da história do Egito – para o bem ou para o mal, algum de vocês tem qualquer dúvida que esse país também poderá avalizar futuros grandes desmatamentos em toda a África para a implantação de projetos agropecuários de interesse do país?