SERRA DO IBIAPABA: O LADO MAIS “GELADO” DO CEARÁ E DO PIAUÍ

Bica do Ipu

Aqui pelas bandas do Sul e do Sudeste do país, o Ceará é vendido como a “terra do sol”, com magníficas praias de areias brancas e mares de águas verdes. O Piauí, que aparece bem menos nas propagandas turísticas, não fica muito longe disso. Pouca gente aqui dessa nossa parte mais meridional do país sabe que o Ceará e o Piauí possuem algumas cidades e regiões com temperaturas médias entre 14 e 25° C, amenas a ponto de fazer com que paulistanos e curitibanos se sintam “praticamente” em casa. Destaco a região de Guaramiranga, conhecida pelos locais com a “Suíça cearense”.

Podemos citar também a cidade de Pacoti, localizada num dos pontos mais altos do Maciço do Baturité; e ainda a região da Serra de Meruoca, famosa pelas cascatas, corredeiras e piscinas naturais. Na cidade de Guaraciaba do Norte, no Ceará, os termômetros chegam a marcar 13° C nos meses de inverno (que na região Nordeste corresponde ao período das chuvas), o que é uma temperatura “congelante” para qualquer sertanejo da gema.

A Serra do Ibiapaba, na divisa dos Estados do Ceará e do Piauí, que também é chamada de Serra Grande, Chapada de Ibiapaba e Cuesta da Ibiapaba, é um desses lugares gelados  e pouco conhecidos por brasileiros de fora da região Nordeste. A imensa massa rochosa domina o relevo de Norte a Sul, com altitudes médias de 750 metros. Na face nordeste da Serra, que fica voltada para a Depressão Cearense, o relevo é bastante íngreme, apresentando uma vegetação densa, considerada como um fragmento da Mata Atlântica. A região é uma zona de transição, apresentando micro biomas com características de Cerrado, Mata dos Cocais, Caatinga e também Floresta Amazônica.

A fauna desta face da Serra é extremamente rica, apresentando uma grande diversidade de aves e mamíferos, incluindo onças-pardas, veados-campeiros e pacas. O ambiente físico é diferenciado também pelos altos índices pluviométricos, superiores a 2 mil mm/ano, os mais intensos do território cearense. A face Oeste da Serra da Ibiapaba, que fica voltada para o Piauí, possui um declive suave e gradual, apresentando terras férteis e grande fartura de fontes e quedas de água.  

O relevo da Serra do Ibiapaba é do tipo Cuesta, uma formação que normalmente ocorre nos limites de bacias sedimentares e sobre as quais falamos em postagem recente. Cuesta é a definição geomorfológica usada para se nomear uma elevação ou serra com um cume assimétrico e com inclinação longa e suave. Com altitudes médias de 700 metros, esta Serra intercepta as massas de ar carregadas de umidade que vem do litoral. A umidade é direcionada para o alto dos morros, onde ocorre a condensação do vapor e a formação das chamadas chuvas orográficas ou chuvas de relevo.

Conforme já comentamos, os índices de pluviosidade da Serra da Ibiapaba são bastante altos para uma região no meio do Semiárido e são as águas destas chuvas que alimentam os aquíferos, garantindo, em épocas normais, uma grande disponibilidade de fontes de água, elemento essencial para a produção agrícola em todas as terras de entorno da Serra.

Uma cidade que aproveita como nenhuma outra os recursos hídricos que descem da Serra do Ibiapaba é Castelo do Piauí, conhecida em todo o Nordeste pela qualidade de suas cachaças artesanais. Vários cursos d’água com nascentes no alto da Serra correm na direção de Castelo e irrigam grandes canaviais. Todos os anos, Castelo organiza uma espécie de carnaval local – a Cachaça Fest. Com muita música, comidas e quitutes típicos do sertão, além de dezenas de rótulos de cachaças produzidas na cidade, essa festa chega atrair um público diário de 40 mil pessoas, mais que o dobro da população da cidade

Em 2016, conforme informamos em uma postagem, a cidade foi obrigada a cancelar a festa por falta de cachaça – a forte seca que assolou toda a região Nordeste entre 2011 e 2016, reduziu fortemente as chuvas na Serra de Ibiapaba, o que resultou numa drástica redução dos caudais dos rios e riachos e comprometeu toda a produção dos canaviais e destilarias de Castelo do Piauí. 

Esse rápido exemplo mostra a importância estratégica dos recursos hídricos da Serra do Ibiapaba, que tem seu controle disputado pelos estados do Piauí e do Ceará há, literalmente, séculos. Com aproximadamente 3 mil km², o que corresponde a quase três vezes o tamanho do município de São Paulo, a Serra do Ibiapaba está envolvida em uma antiga disputa fronteiriça. Nos tempos do Brasil Império, um decreto assinado pelo Imperador Dom Pedro II tentou arbitrar uma solução para essa antiga disputa. O decreto transferiu uma área do litoral do Ceará para o Piauí, que em contrapartida transferiu uma área da sua região do Semiárido para o Ceará. Isso pode não parecer muita coisa para vocês, mas para o Piauí, Estado com a menor extensão de litoral do Brasil, foi um grande negócio. 

Porém, a questão não foi completamente resolvida – os dois Estados mantém a disputa, onde estão em jogo as terras férteis e de clima ameno da Serra do Ibiapaba e, é claro, as águas que descem do alto do relevo e correm na direções dos solos semiáridos dos sertões. Quase que totalmente cercada pelo Semiárido Nordestino, a Serra da Ibiapaba é, literalmente, uma ilha verdejante e fria, que será um verdadeiro troféu para o Estado que vencer essa antiga disputa. A questão agora está nas mãos do STF – Supremo Tribunal Federal, e serão necessários muitos anos e muitas negociações para que os Estados do Ceará e do Piauí consigam chegar a um difícil acordo que agrade as duas partes. 

Se você, bem por acaso, for passar algumas semanas de férias no Ceará ou no Piauí e ficar enjoado de tanto calor, dê uma esticada até a Serra da Ibiapaba para conhecer esse “autêntico recanto frio” do Nordeste brasileiro. 

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