
Entrou em vigor na última terça-feira, dia 23 de maio, um decreto do Governo da França que proíbe a realização de voos domésticos de curta duração no país. A medida tem como objetivo combater as emissões de gases de efeito estufa, principais causadores das mudanças climáticas globais.
Essa proposta vinha sendo discutida pela Assembleia Nacional desde 2021, um assunto que inclusive tratamos em uma postagem da época. Naquele momento, quando o mundo estava enfrentando todos os problemas criados pela pandemia da Covid-19 e proibição da circulação de pessoas, empresas aéreas estavam com suas frotas de aviões em solo e sem saber como arcar com suas despesas operacionais.
Mesmo com seus aviões parados, as empresas aéreas precisavam bancar custos como salários, locação de hangares, pagamentos de leasing (grande parte dos aviões das frotas é alugado), entre outros compromissos. E, em meio a todos esses problemas, deputados franceses estavam discutindo a proibição desses voos. Na época, a ideia pegou muito mal.
Um outro ponto complicado dessas discussões em 2021, foram algumas brechas que estavam sendo incluídas no decreto para prejudicar o mínimo possível a Air France, a grande empresa de aviação da França. Os críticos queriam saber a diferença entre a poluição gerada por aeronaves estrangeiras e as francesas.
O projeto acabou sendo aprovado naquele mesmo ano, mas não entrou em vigor. A proposta teve de ser apresentada para a União Europeia a pedido das companhias aéreas que suspeitavam da legalidade do ato. A proposta que entrou em vigor focou inicialmente em voos de cerca de uma hora a partir de Paris. As principais cidades afetadas são Bordeaux, Nantes e Lyon. Conexões aéreas entre voos não serão afetadas.
Para esses casos, os passageiros precisarão se valer de outros meios de transporte, especialmente dos sistemas de trens. A França possui uma excelente infraestrutura ferroviária, inclusive com linhas de trens de alta velocidade, conhecidos popularmente no país como TGV – Train à Grande Vitesse.
As viagens de trem nesses trechos podem ser feitas entre 2h30 e 3h00, o que acabou sendo um dos principais argumentos de políticos franceses para aprovar o decreto. Segundo o que foi divulgado, as emissões per capita de uma viagem de trem chega a ser até 40 vezes menor do que a de um voo.
Os críticos do novo decreto argumentam, e com muita razão, que os trechos com proibição dos voos representam menos de 3% das emissões globais de gases de efeito estufa das empresas aéreas do país. Segundo esses críticos, é muito mais propaganda do que uma ação efetiva no combate ao aquecimento global.
Um outro argumento forte dos críticos é que já estão disponíveis no mercado os chamados SAF – Combustíveis de Aviação Sustentáveis, na sigla em inglês. O SAF é uma mistura de combustível de aviação convencional com agentes de mistura não convencionais e mais sustentáveis, que reduzem as emissões de CO2 em até 75%.
O SAF é bem mais caro que a querosene de aviação convencional, o que aumentaria significativamente os custos das passagens. Porém, está aqui a principal crítica à medida: os clientes teriam a opção de escolha entre o avião e os trens, seja por questões de consciência ambiental seja por razões econômicas..
Por mais incrível que pareça, até mesmo grupos ambientalistas criticaram a medida por causa de sua baixíssima efetividade no combate às mudanças climáticas. Para esses grupos, a medida tem um caráter muito mais simbólico do que prático.
Uma forma muito mais eficaz de se combater as emissões de gases poluentes dentro do território francês, porém que teria repercussões políticas imensas, seria a efetiva proibição da circulação de automóveis com motores a diesel em grandes cidades como Paris.
De acordo com um levantamento feito ainda em 2018, pela Transporte e Meio Ambiente, uma organização não governamental, circulavam a época 43 milhões de automóveis com motores a diesel dentro dos países da União Europeia. Na França, essa frota correspondia a mais de 8,7 milhões de veículos.
A maioria desses carros são antigos e soltam verdadeiras nuvens de fumaça preta pelos seus escapamentos, algo muito parecido com caminhões e ônibus velhos que costumamos ver em ruas e estradas aqui do Brasil. Eu nunca esqueço da primeira vez que estive em Paris e que me deparei com esse tipo de problema nas ruas da cidade.
Estudos feitos por países europeus demonstram claramente que a poluição gerada pelos motores diesel é muito maior que a emitida por motores a gasolina – em alguns casos chega a ser 18 vezes maior. Os diferentes governos europeus vêm criando uma série de medidas para proibir a venda de automóveis com esse tipo de motor, porém, a frota que circula nas ruas e estradas do continente ainda é imensa.
Um exemplo dos estragos que essa frota de carros antigos e poluentes pode causar é o que se vê na região metropolitana de Paris, uma mancha urbana que tem 12,5 milhões de habitantes, a mesma população da cidade de São Paulo.
Durante os meses de inverno, época do ano em que não há ventos para dispersar os gases atmosféricos, os níveis de poluição em Paris chegam a superar a marca de 100 microgramas por metro cúbico de ar. Esse valor é 4 vezes maior que os limites máximos recomendados pela OMS -Organização Mundial da Saúde.
Para efeito de comparação, minha cidade – São Paulo, que tem fama de ter uma atmosfera bastante poluída, apresenta uma poluição média com níveis de poluentes da ordem de 38 microgramas para cada metro cúbico de ar. Esses dados constam de estudos da própria OMS compilados entre 2009 e 2010.
Entre os muitos “segredos de Polichinelo” que São Paulo possui para ter um ar tão melhor que o de Paris está justamente uma restrição considerável à circulação de veículos com motores diesel dentro de sua mancha urbana. Existem restrições de horários para a passagem de grandes caminhões pelas grandes avenidas da cidade, além da obrigatoriedade do uso de diesel com menores teores de enxofre e outros poluentes.
Outro desses segredos é a grande utilização de veículos com motores a etanol, o famoso álcool da cana-de-açúcar, um combustível que polui bem menos que a gasolina e o óleo diesel. Outra vantagem do etanol é que ele é um combustível renovável.
Na minha humilde opinião, que bem por acaso está bem próxima da de muitos ambientalistas franceses, os ganhos ambientais seriam muito mais efetivos para a França se fossem criadas medidas urgentes para a retirada de toda essa frota de automóveis com motores diesel das ruas e que se estimulasse o uso de veículos elétricos ou com combustíveis alternativos como o etanol.
O problema é que esse tipo de medida desagradaria alguns milhões de proprietários de veículos e forçaria o Governo a desembolsar algumas centenas de bilhões de Euros em incentivos fiscais para a fabricação e venda de veículos novos, além de forçar a criação de toda uma infraestrutura de produção e distribuição de combustíveis alternativos.
Para um Governo que não goza de popularidade (vejam os recentes protestos que foram criados devido às mudanças no sistema de previdência social na França) e que não tem dinheiro em caixa, essa solução é impossível de ser implementada.
Então, para agradar os “euroambientalistas” mais radicais, tomam-se medidas paliativas como essa. Vamos ver por quanto tempo vão conseguir manter o “showzinho”…