AS “BOAS COISAS” DA VIDA MODERNA, OU AINDA FALANDO DAS EMISSÕES DE GASES DE EFEITO ESTUFA

Cozinhando com lenha na África

Na última postagem falei do final melancólico da COP 25 – Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, onde os países participantes não conseguiram chegar a um consenso acerca dos principais temas debatidos. A briga é mais ou menos essa: as populações dos países ricos, acostumadas aos confortos da vida moderna – a eletricidade por exemplo, não querem abrir mão de suas conquistas, ao mesmo tempo que querem impedir a ascensão social de populações dos países pobres, sob a alegação que isso aumentará as emissões de gases de efeito estufa, o que é a mais pura verdade. 

Enquanto pensava nesse assunto, me lembrei de um fato ocorrido em 2009, época em que fui trabalhar na região Amazônica. Formamos na empresa um grupo com o objetivo de desenvolver trabalhos sociais junto as populações mais pobres da cidade de Porto Velho, capital de Rondônia. Uma das primeiras intervenções do nosso grupo foi a de apadrinhar cartinhas de crianças que escrevem ao Papai Noel pedindo presentes – os Correios fazem um belo trabalho de intermediação desses pedidos. 

As cartas que recebemos pediam de tudo – um menino pedia um colchão; outro material escolar. Uma garotinha pediu um peru para a ceia de Natal da família, que segundo ela teria no máximo um frango. O que menos se viam naquelas cartas eram pedidos de brinquedos. Apadrinhei a cartinha de uma “menina” de 21 anos, que pedia um ventilador. Com uma caligrafia ruim e um texto confuso , a moça informava que morava em um quarto muito quente com a filha recém-nascida e que sofria muito durante as noites – era obrigada a dormir com a janela aberta e o quarto acabava sendo invadido pelos carapanãs, pequenos mosquitos da Amazônia que têm uma picada muito dolorida.

Durante a minha estadia de quase dois anos em Porto Velho, morei em um apartamento alugado pela empresa, onde podia contar com três aparelhos de ar condicionado. Esse conforto resultava numa conta de luz bastante cara, mas valia a pena – a temperatura local estava sempre acima dos 35° e não refrescava nada durante a noite. Imaginar aquela moça e sua filhinha dormindo com todo aquele calor me incomodou muito. Além de enviar o ventilador pedido, fiz questão de mandar um presente para a filha dessa moça. 

Assim como essa jovem, existem milhões de pessoas pobres em toda a Amazônia e em outras regiões extremamente quentes do país sonhando com o conforto de um ventilador em suas vidas, ou ainda em ter um televisor, uma geladeira ou simplesmente dispor de iluminação elétrica. Populações de países ricos gozam dessas “modernidades” há, pelo menos, três gerações e não fazem a menor ideia do que é viver num mundo sem esses equipamentos básicos. 

Realizar esses sonhos simples dessas pessoas deve ser uma tarefa prioritária dos Governos. Além das emissões de gases de efeito estufa que estarão associadas à fabricação desses produtos, será necessário o aumento da produção e da distribuição de energia elétrica. No caso do Brasil, que usa majoritariamente centrais hidrelétricas para a geração de energia, isso implica no barramento de grandes rios, na supressão das árvores que estão na área onde será formado o lago e também ao longo das linhas de transmissão de energia. Essa “pequena” alegria e conforto que será agregada à vida dessas pessoas pobres terá, inevitavelmente, fortes impactos ambientais. 

Se pessoas pobres da África tiverem condições de ter acesso a essas pequenas comodidades da vida moderna, os impactos ambientais serão maiores ainda. Cerca de 4/5 da população do continente africano não tem acesso a redes de energia elétrica. São cerca de 621 milhões de pessoas que dependem de velas e lamparinas para iluminar as suas noites. De acordo com informações do APP – Painel para o Progresso da África na sigla em inglês, essas populações gastam em conjunto cerca de R$ 31 bilhões a cada ano com a compra de velas, querosene, carvão e tochas. Para famílias que ganham, em média, R$ 7,80 por dia, essa é uma despesa grande. 

A energia usada para cozinhar também é precária no continente – a imensa maioria das famílias só dispõe de lenha, carvão ou palha para uso em seus fogões improvisados (vide foto). Com a falta de chaminés adequadas para a exaustão da fumaça do interior das casas, cerca de 600 mil pessoas morrem na África a cada ano por causa da contaminação do ar causada por esses fogões. Imaginem os volumes de gases de efeito estufa que serão liberados pelos países africanos caso seus Governos comecem a fazer pesados investimentos em geração de energia elétrica. 

Outro exemplo é a Índia, país que conta atualmente com a segunda maior população do mundo – 1,17 bilhão de habitantes. Cerca de ¼ dos indianos, ou 289 milhões de pessoas, não tem acesso a redes de energia elétrica e 72%, ou 836 milhões de pessoas, usam lenha para cozinhar. O Governo da Índia tem feito grandes investimentos para a construção de novas centrais geradoras de energia elétrica para suprir a carência dessas populações. A Índia já é a terceira maior emissora de CO² do planeta e vocês já podem imaginar o tamanho dos protestos dos grupos ambientalistas internacionais por causa dos novos aumentos em emissões que virão por aí. 

A questão da geração de energia elétrica não poderia deixar de fora a China, o país que mais gera gases de efeito estufa no mundo. Em 2018, as centrais elétricas chinesas, em sua imensa maioria alimentadas pela queima de carvão mineral, geraram 18,47 bilhões de kW/h por dia. Isso representou um aumento de 8,52% em relação a geração de energia elétrica em 2017. Parcelas cada vez mais significativas da população do país estão tendo acesso a eletricidade, muito bem-vinda principalmente para o aquecimento doméstico nos gelados dias de inverno da maior parte do país. 

As grandes consumidoras de energia elétrica na China, entretanto, são as suas incontáveis indústrias. Ao longo das últimas décadas, o grande país asiático se transformou na “fábrica” do mundo. Europeus e americanos, que há muito tempo tem se recusado a realizar trabalhos manuais e repetitivos, delegaram aos chineses essas funções. Essa produção incorporou desde a produção de sapatos e roupas de luxo das grifes mais tradicionais do mundo, peças e componentes de carros, máquinas de todos os tipos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos e tudo o mais.  

Assisti recentemente um documentário sobre os famosos relógios suíços – o Governo do país criou uma lei que limita ao máximo de 75% o total de peças que podem ser fabricados no estrangeiro, principalmente na China. Sem essa lei, muitos dos tradicionais relógios “fabricados” no país já seriam “100% chineses”. Os baixos custos de produção na China, gerados principalmente pelos salários miseráveis pagos aos trabalhadores, estão na raiz dessa linha de produção em que o país se transformou. O mais interessante dessa história é que, apesar da brutal redução nos custos, os relógios suíços ainda são caríssimos – há alguma coisa está bastante errada nisso tudo. 

Resumindo – se todas as pessoas do mundo passarem a ter acesso a eletricidade, uma das mais corriqueiras comodidades modernas, as emissões de gases de efeito estufa aumentarão consideravelmente, elevando ainda mais a temperatura do planeta. Como os países ricos já tem a sua própria cota de emissões, da qual eles não querem abrir mão pois dependem delas para manter seu padrão de vida, caberá então aos países pobres limitarem as suas emissões de gases de efeito estufa – isso significa, entre outras coisas, manter grandes partes das suas populações sem acesso à energia elétrica. 

Entendem agora por que é tão difícil se chegar a um consenso entre os países em reuniões como a COP 25? 

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