ACRE: DOS SOLDADOS DA BORRACHA À HIDROVIA DO RIO PURUS

Balsa Gás em Rio Branco

Há cerca de vinte e cinco anos atrás, quando eu trabalhava na área de engenharia de produtos de uma empresa multinacional de telecomunicações, um amigo de trabalho, advogado da empresa, viajou até o Acre para finalizar algumas cláusulas de um contrato de fornecimento de equipamentos para o Governo daquele Estado. Entre as diversas conversas que manteve com as autoridades locais, esse amigo acabou fazendo uma certa amizade como Secretário Estadual de Educação. Numa conversa com esse Secretário, esse amigo recebeu um convite para assumir a reitoria de uma universidade local. Visivelmente interessado, ele começou a fazer perguntas sobre a vida no Estado, particularmente preocupado com a assistência médica, pois àquela altura ele tinha uma esposa e duas filhas muito pequenas. O Secretário informou que no Estado haviam dois excelentes hospitais – Varig e Vasp (as duas maiores empresas aéreas naqueles anos); ou seja, em caso de doença grave, o melhor rumo a se tomar era o do aeroporto de Rio Branco. Meu amigo, é claro, não aceitou a proposta de trabalho. 

Lembrei dessa antiga e verídica história para falar dos problemas de isolamento do Estado do Acre, que aliás já melhoraram bastante nesses últimos anos. Como já comentei em postagens anteriores, o Acre é o mais novo entre todos os Estados brasileiros, sendo originalmente um território da Bolívia, comprado pelo Governo brasileiro em 1903 a fim de se resolver os problemas relativos a uma verdadeira invasão de seringueiros brasileiros na época. 

O Acre tem uma área de 150 mil km², praticamente a mesma área do Ceará, Estado de origem de uma parte considerável dos seringueiros nordestinos recrutados a partir da década de 1870 para trabalhar na Floresta Amazônica. Com o final do chamado Ciclo da Borracha, esses seringueiros nordestinos acabaram abandonados à sua própria sorte e são os ancestrais de parte considerável da população acreana atual, que conta com pouco mais de 800 mil habitantes em todo o Estado (11 vezes menor que atual população do Ceará). 

Essa incrível e dramática epopeia desses seringueiros, por mais inacreditável que possa parecer, teve um segundo capítulo muito parecido ao longo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quem acompanhou as últimas postagens, vai se lembrar que a principal causa da decadência da exploração do látex na região da Floresta Amazônica foi o crescimento da produção dos seringais do Sudeste Asiático, plantados a partir de sementes da Hevea brasiliensis contrabandeadas por ingleses. Com o avanço de tropas do Império Japonês sobre territórios britânicos com o desenrolar da Grande Guerra, o fornecimento de látex para o esforço de guerra dos Países Aliados ficou comprometido. Mais uma vez, as seringueiras da Amazônia seriam “convocadas” para suprir o mercado mundial. 

O Governo brasileiro de então, criou um programa chamado “Os Soldados da Borracha“, que consistia na convocação de homens para o trabalho de coleta e processamento de látex nas selvas, algo bastante parecido com a convocação feita por seringalistas três gerações antes. Esses “Soldados” receberam inúmeras promessas de compensações por esse “patriótico” trabalho – calcula-se que cerca de 55 mil “Soldados da Borracha”, em sua maioria nordestinos, foram recrutados pelo Governo Federal e enviados para os confins da Amazônia a partir de 1942. O Território do Acre recebeu um grande contingente destes “Soldados”

Ao final da Grande Guerra, quando as fontes de produção de látex no Sudeste Asiático voltaram ao controle dos ingleses, os serviços dos “Soldados da Borracha” não se faziam mais necessários – assim como aconteceu décadas antes, as promessas não foram cumpridas e esses soldados foram largados à própria sorte no meio das matas. Quando morei em Rondônia, entre 2009 e 2010, conheci vários filhos e netos destes “Soldados da Borracha” e ouvi muitas histórias familiares sobre os dramas vividos nessa época. 

A isolada, esquecida e pouco valorizada população do Acre só passou a ter uma integração maior com o restante do Brasil a partir da abertura do trecho final da Rodovia Federal BR-364, que a partir da década de 1960 passou a ligar a cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, a Rio Branco e outras cidades do Estado. O grande rio Purus, que ao lado de uma rede de rios locais como o Acre, sempre foram as artérias de transporte e comunicação do Território, passaria agora a partilhar cargas e pessoas com as rodovias. 

Infelizmente, o fim do isolamento do Acre é relativo – a travessia de caminhões, ônibus e automóveis pelo rio Madeira no trecho final da Rodovia ainda é feita através de balsas, operação que é suspensa nas épocas das grandes cheias do rio. Aliás, um extenso trecho da Rodovia BR-164 fica debaixo d’água durante esses períodos de cheia. Nesses períodos, a população passa a conviver com a falta de alimentos, produtos de consumo, gás de cozinha (a foto mostra uma balsa que passou a ser usada para o transporte deste produto pelo rio Purus) e combustíveis, além de não conseguir escoar a produção local. Um exemplo de produto acreano é a mandioca, cultura que responde por mais de 60% da produção agrícola do Estado – uma vez colhida, a mandioca tem uma determinada duração antes de começar a estragar. Outro ponto crítico é a geração de energia elétrica, que no Estado é produzida na maior parte em usinas termelétricas, que dependem de combustíveis vindos de outras regiões. 

É dentro desse contexto social e econômico que a implantação de uma Hidrovia no rio Purus vem a ser fundamental para o Acre. O rio Purus oferece excelentes condições naturais para navegação na maior parte do ano – nos últimos anos, porém, vem apresentando secas bem acima da média, o que só reforça a manutenção de uma alternativa de transportes por rodovia. Além da imperativa existência de um bom e confiável curso d’água, a criação de uma Hidrovia exige investimentos em portos e terminais de armazenamento, instalação de dispositivos de sinalização para uma navegação segura, inclusive noturna, além de investimentos em modais de transporte complementares – no Acre, estamos falando em rodovias pavimentadas. 

A dragagem de trechos assoreados e a manutenção de um canal de navegação também são fundamentais. Vários trechos do rio Purus e de importante rios da rede de afluentes no território do Acre, costumam apresentar profundidades inferiores a 2 metros em períodos de forte seca, exigindo cuidados na criação e manutenção de um canal de navegação com profundidade adequada para o tráfego de comboios de barcaças de carga. 

Estudos mostram que a estrutura fundiária do Acre é formada em sua imensa maioria por pequenas propriedades rurais onde se produz arroz, milho, feijão, mandioca e melancia. Uma parcela correspondente a 12% das propriedades rurais trabalha com culturas perenes como banana, café, pupunha, laranja, mamão, guaraná, tangerina, maracujá, abacate, entre outras espécies de frutas. A pecuária conta com mais de 2 milhões de cabeças de gado, divididos sua maior parte em rebanhos com menos de 100 cabeças por propriedade. A indústria no Estado está dando seus primeiros passos, com destaque para as áreas de processamento de alimentos e beneficiamento de madeiras. Observem que os produtos locais são todos de baixo valor agregado, dependendo muito de baixos custos de frete para serem competitivos em outras regiões – é justamente aqui que uma Hidrovia bem estruturada no rio Purus mostraria seu valor. 

Além do importante Purus, o Acre possui um outro rio que atende a outra metade do Estado e que também merece ser considerado para implantação de uma Hidrovia bem estruturada – falamos do rio Juruá, sobre o qual trataremos na próxima postagem.

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