O DESPEJO DE LIXO NAS ÁGUAS DO LAGO GUAÍBA, OU RELEMBRANDO AUGUST DE SAINT-HILARIE

Sujeira no Guaíba

Há exatos dois meses, um fenômeno climático provocado por fortes ventos, causou um significativo recuo do mar nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Ventos fortes vindos do Nordeste e soprando em paralelo com o litoral do Brasil, empurraram as águas do mar no sentido Sudoeste. Esse fenômeno coincidiu com o período da lua cheia e intensificou a maré baixa, que em alguns pontos do litoral provocou um recuo do mar da ordem de 50 metros.

Uma das consequências deste fenômeno no mar atingiu o Lago Guaíba e causou muita indignação entre muitos cidadãos Porto-alegrenses: as águas baixaram quase um metro e revelaram uma faixa de areia coberta com uma montanha de lixo.

Em toda a orla de Porto Alegre e também nas inúmeras ilhotas que se formaram sobre os bancos de areia, se avistavam montanhas de lixo e de resíduos de todas as espécies: sacos plásticos, latas, pneus, garrafas Pet, peças de carros, restos de móveis, brinquedos, entre muitos outros.

O Departamento de Limpeza Pública de Porto Alegre aproveitou a oportunidade e despachou equipes de servidores (vide foto) para recolher o lixo à mostra: foram recolhidas 34 toneladas de resíduos apenas no primeiro dia de trabalho – em quatro dias, o volume total de resíduos alcançou a marca de 76 toneladas. A campeã em sujeira foi a região central da cidade.

Apesar do volume de resíduos coletados em um único dia impressionar, esta quantidade representa apenas a ponta de um gigantesco “iceberg” – no fundo do Lago Guaíba, misturado com muito lodo e areia, existe uma camada muito grossa de lixo e entulhos. Em uma publicação anterior, eu comentei sobre as dificuldades que os iatistas dos muitos clubes náuticos do Guaíba enfrentam para navegar no Lago.

Por todos os lados, se avistam extensos bancos de areia, que podem ser fatais para navegantes de primeira viagem no Guaíba. Esportistas mais velhos falam que a profundidade do Lago nos dias atuais é bem menor do que já foi em décadas passadas.

Apesar de parecer um fenômeno recente, o despejo de resíduos no Guaíba é uma prática centenária das populações da região do entorno do Lago. Um dos primeiros registros conhecidos sobre a poluição das águas do Guaíba coube ao cientista francês August de Saint-Hilarie, que esteve em Porto Alegre e em 1822 registrou em seu diário:

Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova; todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas depois do Rio de Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não seja tanto…

As encruzilhadas, os terrenos baldios e, principalmente, as margens da lagoa são entulhadas de sujeira; os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, veem-se negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas.

A cidade de Porto Alegre, sozinha, gera entre 1.600 e 1.800 toneladas de resíduos sólidos a cada dia, considerando o lixo orgânico, os resíduos recicláveis, os resíduos resultantes da varrição das vias e logradouros da cidade e resíduos em geral. Apesar da cidade ter sido uma das pioneiras na implantação da coleta seletiva ainda no início da década de 1990, os serviços de limpeza pública ainda estão longe do ideal.

Um estudo feito em 2016 pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, feito a pedido do Observatório da Política Nacional de Resíduos Sólidos, demonstrou que apenas 4,6% dos recicláveis gerados na Capital são efetivamente aproveitados.

Outro dado preocupante: de acordo com Departamento de Limpeza Pública, somente em materiais recicláveis que são descartados indevidamente junto com o lixo comum, são cerca de 260 toneladas a cada dia. O órgão calcula que existem cerca de 1.000 pontos de descarte irregular de resíduos em toda a cidade, especialmente terrenos baldios, que são usados pela população e por empresas, onde toneladas de lixo e entulho são descartados diariamente – muitos destes resíduos acabam carreados para os arroios que cruzam o município e acabam chegando ao Guaíba.

Um projeto piloto criado pelo Departamento de Limpeza Pública, em parceria com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o objetivo de monitorar e reduzir a quantidade de lixo arrastado pelas águas, instalou um ecobarreira flutuante no Arroio Dilúvio – diariamente, os resíduos retidos na barreira foram recolhidos e pesados por uma equipe de pesquisadores. Em um ano e meio, o projeto recolheu 250 toneladas de resíduos, onde se incluem: peças de isopor, sacolas plásticas, garrafas Pet, restos de móveis, animais mortos, entre outros. E olhem que estamos falando de um único arroio da cidade de Porto Alegre.

Considerando a quantidade total de cidades da bacia hidrográfica e os inúmeros rios e arroios que desaguam no Guaíba, pode-se imaginar o volume total de lixo que chega diariamente ao Lago. Esse dado vem de encontro a uma pesquisa sobre a percepção ambiental dos pescadores, estudo também realizado por pesquisadores da UFRGS e citado na minha última postagem, onde os pescadores citaram o descarte de lixo nas águas como o segundo maior problema ambiental no Guaíba, ficando atrás apenas do despejo de esgotos.

O lançamento de esgotos domésticos e industriais, combinado com o carreamento de resíduos de agrotóxicos, são, de longe, as maiores fontes de poluição das águas do Lago Guaíba. Entretanto, como mostrado rapidamente neste texto, o descarte de lixo e de outros resíduos sólidos nas águas não é nada desprezível e tem um peso enorme na degradação do Guaíba.

Existe, porém, um grande problema, que talvez não fique tão claro à primeira vista: por maiores que sejam os investimentos em infraestrutura de saneamento básico, onde se incluem redes coletoras e estações de tratamento de esgotos, o despejo irregular de lixo e de resíduos nos corpos d’água é uma questão de educação ambiental – só poderá ser resolvida com a conscientização da população. A questão ganha contornos dramáticos quando se lembra que as águas do Guaíba são fundamentais para o abastecimento de milhões de habitantes em toda a região de entorno do Lago.

Passados quase duzentos anos desde a vista de Saint-Hilarie a Porto Alegre, já não se veem pessoas coletando água em cântaros no Guaíba, mas a sujeira nas águas e nas margens do Lago continuam na mesma…

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