
No início da noite do dia 15 de abril de 2019, a famosa Catedral de Notre-Dame, em Paris, foi tomada por um incêndio de grandes proporções. Telejornais e sites de notícias apresentaram essa tragédia ao vivo para todo o mundo. Eu lembro claramente das cenas de voluntários e bombeiros correndo desesperadamente para salvar obras de arte e outras peças religiosas, enquanto outras equipes tentavam dominar as fortes labaredas (vide foto).
Uma das partes mais danificadas da catedral foi o telhado, que teve todo o seu antigo madeiramento completamente destruído. Felizmente, a maior parte da estrutura desse belíssimo exemplar da arquitetura gótica, que teve a sua construção iniciada em 1193, não foi afetada por essa grande tragédia.
Desde então, a reconstrução da Catedral se transformou em uma questão de honra para o Governo da França. Nos primeiros dias após o incêndio, doadores de todo o mundo começaram a enviar contribuições para a reconstrução de Notre-Dame. De acordo com informações do órgão responsável pela administração da Catedral, já foram arrecadados cerca de 833 milhões de Euros provenientes de 340 mil doadores.
Uma decisão tomada pelo Governo francês, que desagradou muitos ambientalistas, diz respeito à reconstrução da Catedral de Notre-Dame seguindo o projeto de restauração feito em 1843 pelo arquiteto Eugène Viollet-le-Duc. O grande ponto de atrito nesse projeto é a estrutura de madeira do telhado – segundo alguns cálculos, poderá ser necessário derrubar até 2 mil carvalhos para fornecer a madeira a ser usada na obra.
O carvalho é uma árvore do gênero Quercus, da família Fagus, da qual existem aproximadamente 600 espécies. Essas árvores são nativas do Hemisfério Norte, sendo encontradas em latitudes temperadas e tropicais da Europa, América do Norte, Ásia e Norte da África.
Desde a mais remota antiguidade, a madeira dos carvalhos vem sendo largamente usada para a construção civil, construção naval, móveis e, em especial, na construção de barris para o armazenamento de bebidas como o vinho e o conhaque.
Esse uso intensivo dessas madeiras levou à derrubada de grandes extensões de matas nativas, especialmente na Europa. Um exemplo citado aqui nas postagens do blog é o da famosa Floresta de Sherwood, na Inglaterra, que já foi o esconderijo do lendário Robin Hood. Atualmente, o que restou da antiga floresta é uma mancha verde do tamanho de um parque urbano.
De acordo com as informações divulgadas pelos órgãos governamentais da França, serão derrubadas cerca de mil árvores nesse ano de 2021, sendo que metade das árvores virá de Florestas Nacionais e a outra metade de florestas particulares. As árvores consideradas ideais para o corte devem ter, no mínimo, tronco com 1 metro de diâmetro e altura útil de 20 metros.
Segundo essas fontes, esse volume corresponde a apenas 0,1% do corte anual de madeira na França, estimado em cerca de 2 milhões de metros cúbicos. Segundo os ambientalistas, esses percentuais são muito relativos – são necessários de 200 a 300 anos para um carvalho atingir esse tamanho.
De acordo com o plano de manejo, os troncos cortados deverão ficar por cerca de 6 meses no chão da floresta secando naturalmente. Durante esse período, especialistas vão avaliar as deformações nos troncos, que muitas vezes se curvam conforme vão perdendo umidade. Caso essa curvatura seja muito acentuada, o tronco será descartado para uso na reconstrução da Catedral e outras árvores precisarão ser derrubadas.
Numa segunda fase, os troncos serão transportados até um deposito coberto, onde prosseguirão no processo de secagem por um período entre 12 e 18 meses, para só depois serem trabalhados nas carpintarias. O nível ideal de umidade para se trabalhar com madeira deve ficar numa faixa entre 34% e 42%. Madeira com excesso de umidade fica sujeita ao ataque de fungos, mofo e insetos; quando a madeira fica muito seca existe a perda de celulose, um polímero natural que mantém as fibras unidas.
Segundo a crítica dos ambientalistas e de muitos especialistas em construção civil, a estrutura do telhado poderia ser feita com elementos metálicos, um material muito mais adequado que a madeira e bem mais resistente no caso de um novo incêndio. Nos dias atuais existe uma infinidade de ligas metálicas disponíveis para esse tipo de uso, o que evitaria a derrubada de tantos carvalhos centenários.
Outra crítica pertinente diz respeito ao uso de elementos de chumbo para a fixação das peças de madeira, uma das premissas do projeto arquitetônico original. Durante o incêndio da Catedral em 2019, essas peças de chumbo derreteram com as altas temperaturas (o ponto de fusão do chumbo é 327,5° C) e grandes volumes do metal (na forma de vapor metálico) foram liberados na atmosfera. Medições feitas nas cercanias da Catedral logo após o incêndio identificaram altos níveis de chumbo na atmosfera e nos solos.
O chumbo, só para lembrar, é um metal pesado muito usado na fabricação de tintas e baterias automotivas, entre inúmeras outras aplicações, com um longo histórico de intoxicação de seres humanos. Conforme a dosagem e a exposição, o chumbo pode causar uma série de doenças no sistema nervoso central.
Durante muitos séculos, redes de abastecimento de água foram fabricadas usando tubulações de chumbo. Um caso clássico foi o da antiga cidade de Roma – muita gente suspeita que as loucuras de muitos imperadores romanos (Nero, por exemplo) foram provocadas pela intoxicação com esse metal.
Um caso histórico brasileiro foi o de Candido Portinari (1903-1962), que na minha modesta opinião foi um dos maiores pintores de todos os tempos. Ele morreu vítima de intoxicação pelo chumbo presente nas tintas usadas em seus trabalhos.
Agora, uma provocação: como muitos de vocês devem recordar, houve um grande incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro em 2018 – grande parte do acervo histórico foi perdido naquela ocasião e a maior parte da construção terminou seriamente danificada.
Vamos imaginar que, para fins de restauração do telhado do prédio, fosse necessário derrubar mil árvores da Floresta Amazônica a fim de obter o mesmo tipo de madeira que foi usada na construção original. Fico imaginando o tamanho dos pulos que muitos “ambientalistas” franceses estariam dando em protesto.
Pessoalmente, eu sou obrigado a concordar com os (verdadeiros) ambientalistas franceses nessa questão. Com todo o respeito ao patrimônio histórico do país e à sua preservação, na construção original da Catedral de Notre-Dame e na restauração de 1843, as pesadas vigas de carvalho foram usadas por que esse era o melhor material disponível para esse fim há época.
Na era das ligas metálicas de titânio e nióbio, ou ainda de materiais compósitos a base de fibra de carbono, nada justifica o sacrifício de tantas árvores centenárias para a construção da estrutura de um telhado. Que Notre-Dame (Nossa Senhora) perdoe minha heresia…