
As formações conhecidas como delta são encontradas normalmente na foz de rios de planície, onde as águas se dividem em vários braços ou canais antes do encontro com as águas de um lago, rio ou oceano. Devido à baixa declividade dos terrenos, as regiões dos deltas favorecem o acúmulo de sedimentos carreados pelos rios, o que leva a formação de ilhas.
As áreas deltaicas são, desde tempos imemoriais, importantes centros habitacionais. Um grande exemplo é o delta do rio Nilo no Egito, um dos berços de nossa civilização. A grande disponibilidade de águas, terras férteis e alimentos (peixes, crustáceos e outros animais) sempre funcionaram como um atrativo para as antigas populações nômades, que graças a este conjunto de características, se transformaram em sedentárias.
O Mekong é o maior e mais importante rio do Sudeste Asiático e sempre ocupou uma posição de destaque nas comunicações e transportes entre os antigos reinos do Sião (atual Tailândia), Laos, Camboja, China, Malásia, Indonésia e outras nações da região. Seu delta ocupa uma área com aproximadamente 40 mil km², equivalente a duas vezes o território do Estado de Sergipe, com aproximadamente 4 mil ilhas e 3.200 km de canais.
Localizado inteiramente dentro do território do Vietnã, o delta do Mekong abriga uma população de 17 milhões de pessoas, que dependem das suas águas para abastecimento, alimentação, trabalho e transportes. As terras do delta são tomadas por plantações de arroz – o Vietnã é o terceiro maior produtor mundial do grão, o alimento mais importante do Extremo Oriente e produto de exportação fundamental para a economia do país.
Há uma surpreendente ligação entre o delta do Mekong e os Lusíadas, o grande poema épico que narra a saga dos navegadores portugueses pelo mundo. O navio em que o poeta Luís Vaz de Camões viajava naufragou na região por volta de 1565, quando fazia uma viagem de Macau para Goa. Reza uma lenda, bastante contestada pelos historiadores, que foi durante esse naufrágio que Camões teve de tomar uma difícil decisão – salvar o manuscrito dos Lusíadas, obra que estava escrevendo há vários anos, ou salvar Dinamene, sua jovem amante chinesa. Camões teria escolhido salvar seus manuscritos e passou meses vivendo como um náufrago no delta, até conseguir ser resgatado.
Essa importantíssima região natural e econômica do Vietnã está sendo ameaçada em duas frentes: por um lado, grandes obras de barragens de usinas hidrelétricas estão em construção por toda a calha do rio Mekong, reduzindo cada vez os caudais de águas doces que chegam até a região do delta. Por outro lado, o nível das águas do oceano está subindo e avançando cada vez mais na direção do interior. O resultado é um avanço da salinização de terras e águas, um processo que poderá inviabilizar completamente a agricultura em um período de poucos anos.
O rio Mekong nasce nas Montanhas Himalaias do Tibete, região controlada pela China, e ao longo de seu curso de mais de 4.300 km atravessa outros cinco países – a fronteira entre Mianmar e Laos, grande parte da fronteira entre o Laos e a Tailândia, Camboja e por fim o Vietnã. Cerca de 100 milhões de pessoas, pertencentes a quase uma centena de grupos étnicos diferentes, vivem ao longo das margens do rio Mekong e dependem, direta ou indiretamente, de suas águas.
A China, que já construiu três hidrelétricas no alto rio Mekong, está construindo mais uma unidade geradora – esse conjunto de represas já causou uma redução substancial nos caudais do rio. O Laos pretende construir oito unidades, o Camboja duas, além de duas hidrelétricas previstas na fronteira entre a Tailândia e o Laos. Essa sucessão de barragens de usinas hidrelétricas, construídas em blocos independentes por diferentes países, não estão considerando que o rio Mekong é um meio ambiente único e ameaçado em diferentes frentes.
O barramento sucessivo de um rio causa todo um conjunto de impactos na dinâmica das populações animais e vegetais. Essas mudanças vão desde a alteração da velocidade das correntezas, transformando ambientes lóticos (de águas com forte correnteza) em lênticos (de águas paradas), algo que afeta plantas e animais, até a criação de obstáculos para espécies de peixes migratórios, que na época da reprodução buscam águas tranquilas correnteza acima.
Um exemplo de graves alterações ambientais provocadas pela construção de sucessivas usinas hidrelétricas é o nosso rio São Francisco, onde estamos assistindo à extinção de diversas espécies de peixes, entre elas o icônico surubim. O rio Mekong tem aproximadamente 1.200 espécies de peixes e produz, anualmente, mais de 2 milhões de toneladas de pescados, alimento essencial para as populações. Essa produção pesqueira, fatalmente, irá declinar ao longo do tempo.
A criação de sucessivas represas ao longo do rio também terá forte repercussão nos ciclos de cheias anuais, reduzindo fortemente as enchentes e o transporte de sedimentos formadores das camadas de solos férteis. A construção da represa de Assuã no Egito, na década de 1960, produziu um efeito semelhante e alterou os ciclos de cheias do rio Nilo. Sem essa fertilização natural das margens, as populações rurais passaram a depender do uso de fertilizantes químicos, um custo extra que reduziu, e muito, os lucros dos produtores; algo semelhante poderá acontecer nas terras marginais do rio Mekong, prejudicando dezenas de milhares de pequenos e pobres produtores rurais.
Por fim, a redução da vazão do rio Mekong irá comprometer todo o equilíbrio da região do delta – sem a força e o volume dos atuais caudais de águas doces, haverá a tendência do avanço das águas salgadas do Mar da China para o interior dos canais do delta, alterando completamente as condições ambientais e inviabilizando a produção agrícola na região.
Algo semelhante está acontecendo na foz do rio São Francisco, onde o nível de salinização está cada vez mais alto e diversas vilas e cidades têm cada vez mais dificuldade para o abastecimento de suas populações e irrigação de plantações. Por uma grande e trágica coincidência, a região da foz do rio São Francisco é uma grande produtora de arroz, cultura que está em franco declínio.
Com o gradual aumento do nível dos oceanos, processo que deverá se intensificar muito até o final desse século, as águas salgadas encontrarão ainda mais facilidade para invadir os canais do delta do rio Mekong, completando assim os estragos que estão sendo feitos pelas intervenções humanas na calha do rio.
Todo o trabalho que a natureza levou milhões de anos para concluir e que vem sustentando e abrigando populações humanas há milhares de anos, está sendo destruído em poucas décadas. O arroz não se adapta a águas salobras e sua cultura poderá ficar totalmente inviabilizada no delta do rio Mekong. Sem contar com sua mais importante cultura agrícola, o que será da enorme população que vive nessa grande região?
Além da perda de sua principal fonte de trabalho e renda, essas populações também correm o sério risco de perder as suas fontes de abastecimento de água devido a salinização. Ou seja, será cada vez mais difícil viver e produzir no delta do rio Mekong, o que forçará milhões de moradores a mudar para outras regiões – são os refugiados do clima, uma população que não para de crescer em todo o mundo.
O drama que vem assolando o delta do rio Mekong é muito semelhante ao que está acontecendo em uma extensa região entre a Índia e Bangladesh, onde encontramos o delta do rio Ganges, a maior formação do tipo do mundo. Falaremos disso na próxima postagem.