Conta-se que durante o martírio de Santa Luzia, no ano de 304 de nossa era, um soldado romano arrancou-lhe os olhos com uma faca e depois os devolveu em suas mãos dentro de uma espécie de bandeja. Para o espanto dos seus torturadores, os olhos da Santa tornaram a crescer milagrosamente – eram mais belos e penetrantes que os olhos originais. Em uma imagem das mais populares, Santa Luzia aparece segurando a bandeja onde os estão os seus dois antigos olhos (a imagem do post é da igreja de Santa Luzia em Lisboa – Portugal).
Santa Luzia também era o nome de um pacato distrito rural da cidade de Nazaré Paulista que, após a construção da Represa do Atibainha entre 1969 e 1975, foi encoberto pelas águas. Cerca de 352 famílias (de acordo com dados oficiais registrados nos cartórios da região) que moravam nos bairros rurais do Moinho, Cuiabá e Ribeirão Acima em Santa Luzia e também das vilas de Vicente Nunes, São Lázaro e Araújo foram obrigadas a abandonar suas terras e casas, vivendo assim seu próprio martírio. A antropóloga Cintya Maria Costa Rodrigues narra o drama dos moradores desapropriados compulsoriamente durante a implantação da Represa do Atibainha em livro que tem o nome deste post.
Aqueles foram anos difíceis – vivíamos em um ‘regime de exceção”, onde todas as decisões importantes e estratégicas do país eram tomadas por militares de alta patente, sem que a população fosse consultada para dar a sua opinião. Certa feita, um alto comandante militar disse em uma entrevista que “o povo era apenas um detalhe”. A decisão sobre a construção do Sistema Cantareira, como não seria diferente, foi decidida em um gabinete – posso até imaginar a ordem: “Execute-se o quanto antes!”.
O impacto da construção do reservatório no Rio Atibainha foi extremamente agressivo já que, para ocorrer o represamento das águas, houve a inundação das áreas dos vales, das várzeas e das terras férteis, supressão de nascentes e afluentes da bacia, além do impacto sócio econômico com a desocupação dos moradores de suas terras, provocando uma desorganização das atividades econômicas e culturais, inviabilizando parte da agropecuária e consequentemente o êxodo rural e um processo de descaracterização das tradições antes existentes. Os moradores destas áreas foram deslocados para áreas periféricas da cidade de Nazaré Paulista e de outras cidades da região (especialmente Bom Jesus dos Perdões), sendo forçados a trocar, em um período exíguo de tempo, seus hábitos tipicamente rurais por outros urbanos. Para os sitiantes remanescentes, era perigoso continuar vivendo nos sítios. Eles estavam na mira de uma legislação ambiental específica, onde a transgressão de qualquer lei resultaria em multas. Outro grande problema, agravado durante o enchimento do lago, foi a obstrução das estradas de acesso às comunidades mais remotas; em alguns casos, devido à necessidade de se recorrer a caminhos alternativos, a distância até o núcleo urbano de Nazaré Paulista chegou a triplicar – a produção rural, simplesmente, tornou-se inviável. Em uma monografia de conclusão do curso de Educação Ambiental em 2005, cunhei esse movimento de expulsão dos moradores como Diáspora Caipira, numa referência à expulsão dos judeus de Jerusalém no ano 70 d.C. pelo general romano Tito. Diáspora significa, literalmente, dispersão – exatamente o que aconteceu com essa população.
Como sempre ocorre nos casos de obras de represas, onde os técnicos envolvidos nos projetos sabem exatamente quais as áreas que serão inundadas e terão de ser desapropriadas, bandos de advogados e políticos da região, que tiveram acesso antecipado às informações da obra, passaram a pressionar os moradores dos bairros para vender suas terras a preços extremamente baixos pois “corriam o risco de não receber nada pelas suas terras”. De posse das terras, foram esses advogados e políticos que receberam as indenizações com valores dezenas de vezes acima daqueles que haviam desembolsado. Os terrenos mais altos, acima da quota do espelho d’água, adquiridos da mesma forma desonesta, foram vendidos posteriormente para condomínios e clubes a preços exorbitantes – nada como uma paisagem aquática para valorizar um terreno!
Com pouco dinheiro, sem uma educação formal e sem uma formação profissional voltada para o trabalho em atividade urbanas, toda essa massa de desapropriados passou a viver de subempregos nas periferias das cidades do entorno. De orgulhosos herdeiros de uma cultura rural com mais de 350 anos passaram à condição de retirantes em um curtíssimo espaço de tempo.
Os impactos promovidos pela construção dos reservatórios, seja para fins de abastecimento de água seja para geração de eletricidade, embora positivos para as áreas urbanas, trazem sérios problemas, seja no aspecto ambiental como no social e econômico. Este é o reflexo da implantação de grandes empreendimentos sem a devida discussão e aprovação por parte dos diversos segmentos da sociedade, mas principalmente junto aos verdadeiros interlocutores, que são os moradores do local. A implantação do Sistema Cantareira não fugiu a esta regra, por mais justificável e necessária que fosse para atender as necessidades de milhões de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo.
Um slogan muito usado por empresas de saneamento básico é aquele que diz que “água é vida” – no caso do Sistema Cantareira podemos afirmar que “água são vidas” – as vidas destes antigos moradores da região do Rio Atibainha e de outros tantos que tiveram destino igual para que a implantação das represas do Sistema fosse possível. Que ao menos respeitemos sua memória usando a preciosa água destes mananciais com responsabilidade e consciência.
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[…] obra de grande porte sem a necessidade de qualquer tipo de estudo de impacto ao meio ambiente ou na vida das populações que viviam na região – centenas de famílias foram, literalmente, expulsas de suas casas e terras, sem qualquer […]
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