UM OUTRO LADO DA GUERRA NA UCRÂNIA: A CRISE HÍDRICA EM DONETSK 

Donetsk, capital do Oblast (região administrativa) de mesmo nome, é a quinta maior cidade da Ucrânia. De acordo com dados do censo de 2001, o último grande estudo populacional da Ucrânia, a cidade tem pouco mais de 900 mil habitantes e cerca de 2 milhões de habitantes vivem nos limites de sua área metropolitana. 

Localizado no sudeste da Ucrânia, o Oblast de Donetsk é sede de um importante polo industrial, além de concentrar importantes áreas de mineração. Cerca de 40% da população local é de origem russa. Sob a justificativa de perseguição étnica desse grupo pelos ucranianos, o Kremlin invadiu e anexou tanto o Oblast de Donetsk quanto outros vizinhos, fato que desencadeou a guerra entre a Rússia e a Ucrânia a partir de 2022. 

Notícias de ataques e contra-ataques espetaculares de lado a lado vem ocupando as manchetes dos noticiários e redes sociais. De acordo com estimativas de organismos internacionais, a Rússia já sofreu 950 mil baixas, sendo 250 mil mortos. A Ucrânia teve até o momento 400 mil baixas, sendo estimados entre 60 mil e 100 mil o número de mortos.  

Além de militares, as baixas envolvem milhares de civis mortos ou feridos, dezenas de milhares de deslocados e centenas de bilhões de dólares de perdas econômicas. Como acontece em toda guerra, as tragédias humanas, econômicas e ambientais se somam e são sempre enormes para todos os lados envolvidos. 

Por detrás dos ataques de altíssima precisão de mísseis e drones, ou dos avanços e conquistas territoriais dos batalhões de infantaria, existe uma face do conflito que quase nunca é mostrada – a tragédia humana das populações de cidades que se encontram no fogo cruzado dos exércitos. A crise hídrica vivida pelos moradores de Donetsk é um bom exemplo. 

Ao longo da década de 1950, quando a então República Socialista Soviética da Ucrânia vivia um período de forte crescimento econômico e o Oblast de Donetsk se destacava, foi construído o canal Sivask-Donetsk-Donbas, um sistema de transposição entre bacias hidrográficas com cerca de 135 km. Esse sistema garantiria o abastecimento de água para a população por mais de 70 anos. 

Com o início do conflito em 2022, os volumes de água que efetivamente chegavam até a cidade de Donetsk e região começaram a ser reduzidos sistematicamente. Ações de artilharia dos dois exércitos atingiram estações de bombeamento do sistema e danificaram trechos do canal. Redes de energia elétrica que alimentam os sistemas de bombeamento passaram a sofrer frequentes interrupções e não há segurança para os trabalhos de equipes de reparos. 

Além desses problemas técnicos, existe um outro agravante – as nascentes dos rios que alimentam o sistema ficam dentro de território da Ucrânia. O país vítima da invasão militar da Rússia não demonstra o menor interesse em dar manutenção num sistema de abastecimento de água que vai beneficiar o inimigo. E a população civil das áreas invadidas é quem mais sofre. 

Nas regiões centrais da cidade, segundo o testemunho de moradores ouvidos por repórteres, as torneiras recebem água uma vez a cada três dias. Além da baixíssima pressão nos canos, o que impede que a água supere o segundo andar dos prédios, a qualidade do líquido é péssima. 

Em regiões periféricas de Donetsk e nas cidades vizinhas da região metropolitana, a situação é ainda pior – as torneiras chegam a ficar até doze dias sem receber uma única gota de água. O abastecimento só não colapsou ainda por que as autoridades russas passaram a deslocar caminhões pipa, o que vem garantindo, com muito esforço e paciência dos moradores, alguns poucos litros de água a cada dia. 

Ações mais elementares do dia a dia como tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos ou até mesmo higienizar alimentos tornarem-se luxos para a maioria dos locais. Doenças gastrointestinais, associadas diretamente a falta de higiene, aumentam exponencialmente. 

Logo após a tomada do Oblast de Donetsk e diante dos iminentes problemas para o abastecimento de água da população, as autoridades russas iniciaram a construção emergencial de um sistema de tubulações para o transporte de água a partir do rio Don, um dos maiores do sul da Rússia. 

Com cerca de 190 km de extensão, esse sistema foi vendido como a “tábua de salvação” para inúmeras cidades do Oblast como Donetsk e Mariupol. Desgraçadamente, a construtora que “ganhou” a concorrência se envolveu em toda uma rede de desvios de dinheiro e pagamentos de subornos. Calcula-se que um volume equivalente a US$ 930 milhões “desapareceu” durante as obras e água nunca chegou em volume suficiente para atender as necessidades das populações. 

A crise hídrica não está afetando apenas a população civil local – os esforços militares dos russos na região também estão sendo impactados. Um exemplo são os acampamentos montados para abrigar as tropas, que estão sendo instalados em locais próximos de fontes de água e distantes dos fronts de combate. 

A baixa disponibilidade de água também está afetando o trabalho dos soldados. Entre inúmeros problemas, trabalhos físicos pesados como a escavação de trincheiras estão limitados a períodos de uma a duas horas por dia. Serviços mais complexos de manutenção de veículos e equipamentos militares só podem ser feitos em oficinas distantes dos fronts

Soldados treinados para combater inimigos no campo de batalha agora também precisam lutar contra a sede. Notícias de rebeliões contra as péssimas condições das tropas têm crescido. 

E nada do que já está caótico não pode piorar ainda mais – a chegada iminente do rigoroso inverno poderá complicar ainda mais qualquer perspectiva de manutenção ou de reconstrução do sistema de abastecimento de água na cidade de Donetsk ou qualquer outra da região. 

A pergunta que fica: quem vai vencer a guerra na região: os ucranianos, os russos ou a seca? 

A CRISE HÍDRICA NO IRÃ OU, LEMBRANDO DO LAGO ÚRMIA 

Nas últimas décadas o Irã investiu pesado na construção da imagem de superpotência militar do Oriente Médio. Além de fortes investimentos em homens e equipamentos bélicos para as suas forças militares tradicionais, o país passou a se esforçar muito para dominar o ciclo da energia (e porque não dizer das armas) nucleares. 

Nos últimos meses essa escalada armamentista desaguou numa guerra aberta contra o Estado de Israel, conflito que só entrou num compasso de espera após uma vigorosa e desproporcional intervenção dos Estados Unidos – os norte-americanos lançaram cargas pesadíssimas de bombas sobre diversas instalações nucleares do país, levando a uma “pausa forçada’” nas agressões. 

O discurso belicoso das autoridades iranianas, que dominava as redes sociais e canais de notícias, subitamente foi mudado nas últimas semanas – do ufanismo de uma gloriosa vitória contra os “sionistas”, o país passou a falar de um iminente colapso dos sistemas de abastecimento de água nos próximos meses. 

Os mais importantes reservatórios de água do Irã estão com níveis baixíssimos e, caso não cheguem as chuvas, a população do país poderá ficar sem água dentro de poucas semanas. Essa situação é o resultado de uma forte seca que já dura cinco anos e da falta de uma gestão adequada dos recursos hídricos do país. 

Em algumas regiões do Irã as temperaturas têm ultrapassado a marca de 50º C nas últimas semanas – na cidade de Shabankareh, localizada próxima da fronteira com o Iraque, os termômetros atingiram a inacreditável marca de 52,8º C. Na capital do país – Teerã, as temperaturas frequentemente vêm superando os 40º C. O volume de chuvas em grande parte do país caiu 50% nos últimos anos. 

Com aproximadamente 1,65 milhão de km², o território do Irã é formado em grande parte por regiões áridas e semiáridas. Desde a antiguidade, os iranianos vêm travando uma luta contra a escassez de recursos hídricos. Um exemplo são o qanats, tuneis subterrâneos para o transporte de água. Em tempos modernos, o país investiu pesado na construção de represas – já eram 647 grandes reservatórios de armazenamento de água em 2018. 

Um exemplo é a Barragem de Latyan na região de Teerã, projetada para armazenar até 95 milhões de metros cúbicos de água. Atualmente, o complexo está com um volume armazenado de apenas 9 milhões de metros cúbicos, o que mostra o tamanho do problema. Não basta simplesmente ter água – é preciso gerenciar o consumo cuidadosamente.

As fontes subterrâneas não estão em condições melhores. Estudos indicam que o nível do lençol freático em Teerã baixou 12 metros nos últimos vinte anos, um problema que se reverte no afundamento do nível do solo em vários bairros da cidade. Estudos geológicos mais complexos mostram um quadro ainda mais catastrófico. 

Os solos do Irã guardavam desde tempos imemoriais um volume equivalente a 500 bilhões de metros cúbicos de água. Desse volume, um total de 200 bilhões de metros cúbicos já foram explorados e a maior parte do volume restante é formado por águas salobras, inadequadas para o consumo humano e agricultura. 

O maior consumidor de água no país é a agricultura, que consome entre 70% e 90% da água disponível, nada muito distante da média mundial (no Brasil, o volume corresponde a 70% do consumo global). O problema é o desperdício de água devido ao uso de sistemas e técnicas de irrigação obsoletos, onde volumes de até 70% são perdidos para a evaporação. Alguns cálculos indicam que cerca de 50 bilhões de metros cúbicos de água são desperdiçados pela agricultura iraniana a cada ano. 

Outro problema dessa complexa engrenagem é o alto consumo per capita pela população. Em alguns bairros de Teerã, citando um único exemplo, o consumo diário dos moradores chega aos 400 litros. Esse volume é quase três vezes maior que o consumo médio de um paulistano e quatro vezes maior do que o que é recomendado pela OMS – Organização Mundial da Saúde. 

A má gestão dos recursos hídricos no Irã não é um problema recente. Um exemplo do descaso com o problema é mostrado pelo caso do Lago Úrmia, localizado na província do Azerbaijão (não confundir com o país vizinho), no nordeste do Irã. 

O Úrmia já foi o maior lago de águas salgadas do Oriente Médio, com um espelho d’água que chegava a 6 mil km². Localizado no centro de uma grande depressão cercada por cadeias de montanhas, o lago é alimentado principalmente pela água de degelo de glaciares. A bacia hidrográfica, que é do tipo endorreica (sem saída para o mar) tem aproximadamente 52 mil km². 

Assim como aconteceu com outros lagos do mundo, projetos de agricultura irrigada passaram a consumir a maior parte das águas de rios que corriam na direção do Lago Úrmia. Conclusão – em 2013, o espelho d’água estava reduzido a meros 500 km². Para piorar a situação, o sal acumulado no fundo do lago passou a ficar exposto ao vento e foi espalhado por grandes áreas vizinhas, comprometendo a fertilidade dos solos. 

Após o caos instalado, as autoridades iranianas resolveram se mexer e diversas medidas foram tomadas para reduzir o consumo de água pelos agricultores locais. Dados de 2020 mostram que o lago está se recuperando gradualmente – o espelho d’água atingiu a marca de 3,1 mil km². 

Infelizmente, o zelo tardio que passou a ser dedicado ao Lago Úrmia passou longe da imensa maioria das fontes de água do Irã. O esgotamento das fontes de água é iminente e não existe um plano “B” a vista. 

A pergunta é – o que fazer para abastecer uma população de mais de 90 milhões de habitantes do país daqui para a frente?