O RIO DOS SINOS E A POLUIÇÃO POR ESGOTOS

Novo Hamburgo

Os esgotos domésticos são formados a partir da soma de todas as águas servidas em um imóvel, ou seja, as águas resultantes da lavagem das roupas nos tanques e máquinas de lavar; da lavagem de pratos, panelas e de alimentos nas pias das cozinhas; da lavagem de mãos e da escovação de dentes nas pias ou lavatórios dos banheiros; das águas dos banhos e das lavagens dos ambientes internos e ainda pelas descargas dos vasos sanitários. Em resumo – toda a água potável que chega ao imóvel e é usada no dia a dia dos moradores, acaba sendo transformada em esgoto doméstico. A OMS – Organização Mundial da Saúde, recomenda que cada ser humano, em qualquer parte do mundo, tenha acesso a, pelo menos, 100 litros diários de água, valor suficiente para garantir a sua higiene pessoal, a preparação de alimentos, o consumo de água para saciar a sede e as demais atividades de limpeza da habitação. No Brasil, o consumo médio de água por habitante se situa na faixa entre 150 e 200 litros/dia – em algumas regiões, como na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, este consumo é bem mais alto, chegando próximo dos 300 litros/dia. Este consumo inclui tanto a água consumida nas residências quanto as perdas na rede, seja por vazamento nas tubulações ou por roubo de água através das ligações ilegais, mais conhecidas como “gatos”. Logo, se considerarmos que o esgoto doméstico gerado por um determinado habitante é de 150 litros/dia e se considerarmos que a região do Vale do Rio dos Sinos tem uma população com aproximadamente 1,5 milhão de habitantes, chegaremos facilmente ao valor total de 225 milhões de litros de esgotos gerados a cada dia – chova ou faça sol, faça frio ou faça calor: esse volume de esgotos diários é mais ou menos constante. Simples assim.

Esse volume de esgotos, é claro, variou muito ao longo da história da humanidade. Em tempos antigos, quando as cidades não dispunham de redes de distribuição de água potável, as casas eram abastecidas a partir da água coletada em fontes públicas ou em rios próximos; pela dificuldade de transporte, as famílias acabavam tendo um acesso muito restrito à água e, por isso, geravam volumes baixíssimos de esgotos – em algumas cidades medievais da Europa, há registros que falam de um consumo per capita de água na ordem de 2 litros de água ao dia. Com a melhoria da infraestrutura das cidades e disponibilização de volumes cada vez maiores de água, primeiro por fontes públicas e chafarizes em maior quantidade nos bairros e depois pelos sistemas de distribuição de água a partir de redes públicas, o consumo de água só fez crescer. E a consequência natural do aumento do consumo de água nas residências é o aumento do volume de esgotos gerados e a necessidade de se eliminar este esgoto de alguma maneira.

Uma característica marcante do processo de colonização no Brasil foi a implantação das vilas e cidades nas proximidades de, pelo menos dois cursos d’água – um destes cursos forneceria a água para o abastecimento das residências e o segundo, seria utilizado para o lançamento dos esgotos e do lixo. Na Vila de São Paulo de Piratininga, embrião da atual cidade de São Paulo, o local escolhido pelos padres da Ordem dos Jesuítas para a construção de sua escola e capela foi uma elevação próxima a dois rios: o Tamanduateí e o Anhangabaú – o primeiro foi o responsável pela água usada no abastecimento local até meados do século XIX; o segundo, usado para o despejo do lixo e esgotos gerados pela população. Essa “tradição” pode ser observada em cidades de Norte a Sul do Brasil.

A região onde encontramos o rio dos Sinos vem sendo ocupada, desde o século XVII, por estâncias voltadas a criação de gado, com forte tradição na produção de carne salgada e artigos de couro. A partir do século XIX, com a intensa imigração de colonos, especialmente de origem alemã, cidades foram fundadas em toda a região. A combinação da disponibilidade de couro e das técnicas de produção introduzidas pelos imigrantes, levou ao início do processo de industrialização regional voltado para os setor coureiro-calçadista. Com o crescimento econômico, as cidades da região passaram a receber imigrantes vindos das áreas rurais e passaram a crescer fortemente. Desenvolvimento econômico e crescimento populacional, normalmente, acabam resultando na poluição de corpos d’água, o que infelizmente foi o que ocorreu com o rio dos Sinos e outros rios do extremo sul e de outras regiões do Brasil.

De acordo com informações da COMUSA – Companhia Municipal de Saneamento de Novo Hamburgo (a foto mostra o Monumento ao Sapateiro nesta cidade), uma das mais importantes cidades da região, ficamos sabendo que apenas 4% dos esgotos coletados na cidade recebem tratamento adequado; a maior parte dos esgotos domésticos gerados diariamente pela população são despejados in natura nos arroios Pampa e Luiz Rau, que desaguam no rio dos Sinos. Essa é a média de tratamento dos esgotos nas cidades da região, o que explica o grau de deterioração ambiental do rio dos Sinos. A construção de redes coletoras e interceptores de esgotos ao longo das margens dos rios (interceptores são tubulações que recebem os efluentes despejados por redes de esgotos “particulares”, construídas em mutirão pelas populações, para o despejo dos esgotos de suas casas nos corpos d’água) e também a construção de ETEs – Estações de Tratamento de Esgotos, são as únicas alternativas para o controle do lançamento dos esgotos domésticos que, mais cedo ou mais tarde, acabarão chegando nas águas do rio dos Sinos.

A poluição por esgotos, conhecida tecnicamente como poluição difusa, exige enormes investimentos em dinheiro, trabalho e tempo para ser controlada – requer um esforço insistente de ligação de uma casa após a outra na rede de esgotos. Este trabalho exige o comprometimento contínuo de diversas administrações municipais, ao longo de várias décadas, até a solução definitiva do problema. Aqui no Brasil, infelizmente, sempre que uma nova administração assume uma prefeitura, é frequente o abandono de obras iniciadas pela administração anterior. Os esgotos industriais gerados pelas indústrias e curtumes de toda a região, fontes de poluição bem mais fáceis de se localizar e controlar, tem recebido muita atenção das autoridades ambientais e estão “relativamente” sob controle.

Outra fonte importante de poluentes encontrados nas águas dos rios são os resíduos sólidos descartados sem maiores cuidados por parte das populações em terrenos baldios ou nas margens dos rios, que acabam sendo arrastados para dentro das calhas dos rios. Em algumas cidades, as determinações da Política Nacional dos Resíduos Sólidos ainda não foram cumpridas e o lixo urbano continua sendo enviado para despejos em lixões. As recomendações da nova legislação começam com ações de educação ambiental no sentido de se reduzir a produção de resíduos sólidos e a separação dos materiais que podem ser reciclados ainda nas residências. Ao poder público cabe a criação de programas e centrais de processamentos de resíduos recicláveis e a adoção de sistemas de aterro controlado para a disposição final dos resíduos orgânicos e inservíveis coletados nas cidades. Outro foco importante são os resíduos da construção civil, os famosos entulhos, formados basicamente por resíduos que podem ser reaproveitados pela própria indústria da construção civil ou, na pior das hipóteses, pode ser utilizado pela própria prefeitura para a realização de aterros. Com a adoção destas medidas, a redução dos resíduos sólidos e de lixo lançados nos rios cairá dramaticamente.

Sem que se façam gigantescos esforços para a implantação de redes de saneamento básico para a coleta e o tratamento dos esgotos domésticos e industriais, além de implantação de políticas sérias para a coleta e destinação final dos resíduos em todas as cidades do Vale do Rio  dos Sinos, dificilmente o mais importante rio da região sairá da lista dos corpos d’água mais poluídos do Brasil.

Continuamos no próximo post.

RIO DOS SINOS – O 4° RIO MAIS POLUÍDO DO BRASIL

São Leopoldo

Em outubro de 2006, um gigantesco desastre ambiental, classificado como um dos maiores já ocorridos no Rio Grande do Sul, fez o rio dos Sinos ganhar projeção mundial – aproximadamente 90 toneladas de peixes mortos apareceram no trecho entre Portão e Sapucaia do Sul. A responsável por esta tragédia ambiental foi uma aparente combinação de baixos níveis de oxigênio dissolvido na água com uma verdadeira sopa de despejos químicos industriais. A tragédia “anunciada” se completou com a presença de um grande volume de peixes no rio devido à ocorrência de uma forte piracema, o conhecido processo de migração dos peixes rumo às nascentes dos rios com fins de reprodução – uma mistura que acabou sendo, simplesmente, fatal para os peixes: calcula-se que perto de 1 milhão de peixes morreram neste desastre ambiental.

O relatório divulgado na época pela FEPAM – Fundação Estadual de Proteção Ambiental, apontou como causas do desastre os despejos de efluentes químicos de seis empresas da região e a alta carga de esgotos domésticos lançados in natura nas águas do rio. Um outro fator que contribuiu para a tragédia ambiental foi o alto nível do Lago Guaíba (conhecido popularmente como rio Guaíba), o que provocou o “represamento” temporário das águas do rio dos Sinos e contribuiu para a elevação da concentração dos poluentes e das águas com baixos níveis de oxigênio. Estudos posteriores, realizados por equipes de monitoramento da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontrou mais de 2.100 tubulações de despejos domésticos ao longo das margens do rio e mais de 1.500 pontos onde a mata ciliar foi removida.

O rio dos Sinos nasce no município de Caraá, litoral Norte do Rio Grande do Sul e percorre aproximadamente 190 km até desaguar no delta do Jacuí no município de Canoas. Os rios Caí, Gravataí e Sinos são os principais formadores do Lago Guaíba, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Coincidência ou não, estes são os três rios mais poluídos do Rio Grande do Sul e integram a lista dos 10 mais poluídos do Brasil. O nome do rio foi dado como uma referência a grande sinuosidade do seu curso. O rio atravessa uma região com importantes cidades onde vive uma população de mais de 1,3 milhão de habitantes, conhecida como Região do Vale do Rio dos Sinos, e com forte economia industrial formada por curtumes, indústrias químicas, metalúrgicas, produtoras de plásticos e de componentes para calçados – aliás, a região concentra o maior polo calçadista do Brasil e, na esteira, um grande número de curtumes e indústrias associadas. A cidade de Novo Hamburgo, uma das mais importantes da região, é sede da FIMEC- Feira Internacional de Couros, Produtos Químicos, Componentes, Máquinas e Equipamentos para Calçados e Curtumes, considerada a maior feira do setor na América Latina e a segunda maior do mundo. Desde a década de 1970, o evento atrai comerciantes, empresários, industriais e clientes de todo o Brasil e países vizinhos, que buscam os novos lançamentos e as tendências do setor coureiro-calçadista.

O couro foi um dos primeiros materiais utilizados como matéria prima pela humanidade. Era uma espécie de subproduto dos animais caçados para alimentação dos grupos humanos. O couro era removido, limpo e seco, para então ser utilizado na forma de tapetes, de mantas, roupas e utensílios para o uso diário. Por se tratar de matéria orgânica, esses “objetos” tinham uma vida útil bastante curta – conforme o couro apodrecia, era substituído por novas peças retiradas de animais recém caçados. Com o passar do tempo, foram sendo descobertas técnicas para o tratamento do couro, o chamado curtimento, o que resultou num aumento progressivo da vida útil do material. O curtimento é um processo que mumifica o couro, estabilizando o teor de umidade e garantindo a durabilidade. Calcula-se que aproximadamente 80% do couro usado no mundo seja empregado na fabricação de calçados, o que justifica a presença de tantos curtumes na Região do Vale do Rio dos Sinos. O percentual restante é destinado a outros setores, como o automotivo e indústria da moda. Os couros mais utilizados no Brasil são os retirados do gado bovino, seguido pelos couros de cabras, ovelhas, búfalos e avestruzes. Atualmente, novos tipos de couros vêm sendo produzidos em pequena escala no país, como os couros de jacarés com origem em criadouros autorizados pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, couros de algumas espécies de peixes comerciais (couro de tilápia, por exemplo), entre outros.

As peças de couro bruto passam por um processo de raspagem, onde restos de carne, gordura, pelos e outras impurezas indesejadas são retiradas. Numa etapa seguinte, o couro recebe um tratamento químico para eliminação de todas as bactérias. Nos curtumes modernos, o processo final de curtimento dos couros utiliza sais de cromo. De acordo com informações do CRQ – Conselho Regional de Química, aproximadamente 98% dos couros produzidos no Brasil são tratados com sais de cromo. Após o processo de curtimento, que vai garantir maciez e durabilidade ao produto, alguns tipos de couro ainda passam por etapas tingimento, onde serão aplicados diversos corantes e produtos químicos, cujos efluentes se somarão aos resíduos gerados no curtimento. Durante décadas, os efluentes e resíduos, contaminados com produtos químicos e cromo, gerados nos curtumes das cidades do Vale do Rio dos Sinos, eram despejados nos arroios e rios da região sem qualquer tipo de tratamento.

O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Os compostos de cromo (estado de oxidação +6) são muito oxidantes e podem ser altamente nocivos. Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Algumas espécies de plantas e animais regulam suas funções metabólicas através de pequenas doses de cromo. Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais que bebam ou mantenham contato com estas águas. Profissionais que trabalham nos curtumes, expostos diariamente a toda uma série de produtos químicos, podem apresentar problemas como rinite, problemas no estômago, lesões na pele e, em casos extremos, riscos de desenvolver câncer no pulmão.

Estudos publicados em 2012 indicavam que, de toda a carga bruta de cromo gerada no Estado do Rio Grande do Sul, cerca de 90% se encontrava na bacia hidrográfica do rio dos Sinos. Nos últimos anos, os órgãos ambientais do Estado do Rio Grande do Sul passaram a realizar um forte trabalho de controle das fontes geradoras de cromo e de outros efluentes industriais originados nas indústrias químicas e nos curtumes. Apesar dos lançamentos de efluentes industriais nas águas do rio dos Sinos estar sob controle, os lançamentos de esgotos domésticos continuam. Estudos indicam que apenas 5% destes esgotos gerados pelas cidades da região do rio dos Sinos recebem um tratamento adequado em ETEs – Estações de Tratamento de Esgotos. Ironicamente, o rio dos Sinos é um dos grandes mananciais de abastecimento das cidades da região, que captam e tratam suas águas poluídas para distribuir para a população, processo que consome inúmeros recursos e grandes quantidades de produtos químicos.

A “receita da destruição” do rio dos Sinos é a mesma encontrada em outras regiões brasileiras: forte crescimento populacional devido a migração do campo para as cidades, combinada com um crescimento econômico “a qualquer custo”. O resultado desta fórmula é o mesmo de sempre: rios altamente poluídos com despejos de esgotos domésticos e industriais, lançamento de resíduos sólidos e lixo nas margens e águas dos rios, contaminação das fontes de águas utilizadas no abastecimento de populações, destruição dos habitats de inúmeras espécies de animais e plantas, entre outras tragédias ambientais.

No mundo inteiro, estão começando a faltar rios limpos e disponíveis para o lançamento de mais esgotos e resíduos sólidos – ou nós reduzimos a poluição de uma vez por todas ou vamos ficar com estoques cada vez mais reduzidos de água potável.