No meu último post comentei rapidamente da importância do rio Tietê no desenvolvimento da cidade de São Paulo ao longo dos séculos – a história mostra que cidades e civilizações só vingaram quando dispunham de uma fonte confiável de água para o seu abastecimento, fossem rios, lagos ou lençóis subterrâneos. Citando alguns exemplos: o Tigre e o Eufrates na região da Mesopotâmia, o Nilo no Egito, o Indus e o Ganges no subcontinente indiano, o Volga na Rússia, o Yang-Tsé (Rio Azul) e o Huang-Ho (Rio Amarelo) na China, sem falar de outros rios importantes na Europa e nas Américas.
A repentina falta de água, ao contrário, levou cidades e civilizações a ruína – Eridu, uma antiga e importante cidade da Mesopotâmia, vizinha da lendária cidade de Ur, a terra natal do patriarca bíblico Abraão, foi fundada na foz do rio Tigre: uma alteração natural no curso do rio deixou a cidade distante de sua principal fonte de água, levando toda a população a abandonar suas casas e migrar para outras cidades.
A decadência do antigo Império Maia na América Central pode ser outro exemplo de ruína provocada pela redução brusca dos estoques de água numa região: alguns grupos de historiadores e arqueólogos especulam que o abandono repentino de grandes cidades na península de Iucatã pode ter sido motivado por uma fortíssima e prolongada seca que se abateu sobre a região. Logo, sem o nosso maltratado e sujo rio Tietê, a história da Vila de São Paulo de Piratininga teria sido muito diferente.
Existe um detalhe importante na epopeia do rio Tietê, que não sei se os leitores repararam: suas águas sempre foram fundamentais para o transporte de cargas e de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo – porém, seu uso para o abastecimento da cidade nunca foi relevante nos tempos antigos, quando a qualidade da água era bastante razoável – nos dias atuais, quando foi transformado numa vala de transporte dos esgotos da cidade, é mais difícil pensar nesta possibilidade, ainda que viável com altíssimos custos para o tratamento.
O único trecho do rio que permite o aproveitamento adequado das suas águas nas proximimidades da Região Metropolitana de São Paulo é o chamado Alto Tietê, que abastece trechos da Zona Leste de São Paulo e de algumas cidades vizinhas. Bastante proximo das nascentes e livre de poluição, esse trecho apresenta águas com boa qualidade
Como comentado em outros posts desta série, a cidade de São Paulo, até meados do século XIX, se valia de todo um conjunto de pequenos ribeirões e rios menores para captar a água usada no abastecimento de seus habitantes. Durante muito tempo, a coleta e o transporte da água até as residências era feito através de cântaros carregados pelos próprios moradores ou por escravos. Depois de quase duzentos anos da sua fundação, quando a Vila foi elevada à condição de Cidade, foi iniciado um trabalho gradativo de instalação de bicas e chafarizes públicos em São Paulo.
Nas últimas décadas do século XIX foi iniciada a distribuição de água encanada, captada de fontes cristalinas na Serra da Cantareira. O uso de águas do rio Tietê para o abastecimento em larga escala para a população da cidade de São Paulo não aparece nas fontes consultadas – até meados do século XIX, essa função coube ao rio Tamanduateí.
Há uma razão bastante simples para isso – a água dos rios de maior porte recebe grandes quantidades de sedimentos ao longo do seu curso e, caso seja necessário utilizá-las para uso no abastecimento de residências, sistemas de filtragem ou tratamento precisarão ser utilizados. Havendo outras fontes de água na região com uma qualidade superior, é evidente que as pessoas darão preferência ao uso desta alternativa para o seu abastecimento.
Em regiões montanhosas e/ou com solos rochosos, a qualidade das águas é menos afetada por sedimentos como argila e silte (normalmente, essas águas carreiam areia e cascalho). Em rios de planalto e de cursos lentos como o Tietê, a concentração de sedimentos finos é muito grande e, sem um tratamento adequado, fica complicado consumir esse tipo de água. Ao Tietê então, coube a missão de ser a “estrada líquida” da região do Planalto de Piratininga, o que em termos históricos contribuiu muito para a futura transformação do rio em canal de esgotos da cidade.
Para exemplificar o problema da qualidade das águas dos rios com águas com muitos sedimentos, deixem-me falar um pouco do famoso rio Nilo (vide foto), um dos mais importantes da história mundial. Diferente do encharcado Planalto de Piratininga, a maior parte do território do Egito é formado por grandes desertos e o Rio Nilo sempre foi a principal fonte de água para o abastecimento da população desde os tempos imemoriais – mais de 90% da água disponível ainda hoje no país ainda vem do rio Nilo.
Assim como no rio Tietê, as águas do Nilo são carregadas de material particulado fino e necessitam de um pré tratamento antes do consumo. Nos tempos do antigo Egito, quando ainda não existiam as técnicas de tratamento de água disponíveis na atualidade, a população era obrigada a “tratar” a água que seria consumida em suas casas: primeiro armazenavam a água captada no Nilo em potes, deixando em repouso até a decantação das partículas mais pesadas; depois, essa água passava por um processo de filtragem usando-se cubas entalhadas em arenito, rocha sedimentar de grande porosidade – só depois a água podia ser utilizada.
Pela sua importância, o rio Nilo ocupava um posto de divindade na mitologia egípcia. Paulistanos, ao contrário, privilegiados pela natureza com uma invejável rede hidrológica formada por centenas de riachos e rios, não elegeram o Tietê nem a beato e o destruíram – as águas que faltam hoje para o abastecimento da cidade são trazidas de fontes distantes, algumas localizadas a muitas centenas de quilômetros de distância como é o caso do Sistema Cantareira, cujas nascentes dos rios principais ficam a mais de 150 km da capital paulista.
É uma grande ironia da história e da geografia.
Em se falando do rio Nilo, podemos concluir que desde os primeiros registros bíblicos o homem já fazia um processo de decantação, dessalinização da água para consumo humano. E hoje sofremos com o desabastecimento e não resolvemos com medidas seculares. Como o filtro de barro ou a moringa.
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