AS VINHAS DA IRA CLIMÁTICA 

São as águas de março fechando o verão 
É a promessa de vida no teu coração” 

A maioria dos leitores deve conhecer esses versos maravilhosos que fazem parte da atemporal canção “Águas de março”, composição do imortal Tom Jobim e que ganhou o mundo na inigualável voz de Elis Regina. O verso exalta o final do verão e da temporada das chuvas na região Centro Sul do país. 

Em tempos de mudanças climáticas globais, entretanto, a letra não está mais correspondendo com a realidade – já se passou quase um mês desde o final do verão e as “águas de março” continuam a castigar com força muitas cidades e regiões do Brasil em pleno mês de abril. 

Exemplos fáceis que podemos citar são as fortes chuvas que castigaram as regiões Central e Sul do Estado do Rio de Janeiro poucos dias atrás ou ainda as tempestades que continuam assolando as tardes na Região Metropolitana de São Paulo. As mudanças climáticas, é certo, vieram para ficar! 

Um grande setor econômico que vem sentindo como nenhum outro os impactos das mudanças climáticas é a vitivinicultura, que engloba todo o processo de produção do vinho, desde o cultivo das uvas até a produção dos vinhos.  Esclarecendo: a viticultura se dedica ao cultivo e a produção de uvas, enquanto a vinicultura corresponde a produção dos vinhos. 

O vinho é uma das mais antigas bebidas alcoólicas produzidas e consumidas pela humanidade. Evidências arqueológicas encontradas em áreas da Ásia Central como a Geórgia, o Irã, a Turquia e a China, datadas entre 8 mil e 5 mil anos antes de Cristo (a.C), indicam que a domesticação da videira, a planta que produz a uva, e o início da produção de vinhos começou ali, se espalhando gradativamente pelo mundo. 

Regiões de clima temperado, com invernos frios e verões quentes se mostraram as mais adequadas para o cultivo da uva. Extensas regiões da Europa, do Norte da Ásia e do Oriente Médio se destacaram na produção de vinhos de excelente qualidade desde o limiar da história das civilizações. Entre os países de maior tradição vinícola se destacam a Itália, França, Espanha, Portugal, Alemanha, Grécia e Turquia. 

Com o avanço das ciências e da cartografia em eras mais modernas, os geógrafos perceberam que as melhores regiões produtoras de vinho no Hemisfério Norte se situavam entre os paralelos 30 e 40° – essa constatação ficou ainda mais evidente após o início da produção de vinhos na Califórnia, região que se encontra dentro destes paralelos, ainda no início da colonização espanhola (a região na época pertencia ao México). 

Com o passar do tempo, cartógrafos descobriram que no Hemisfério Sul também existia uma faixa climática que apresentava as condições ideais para a produção do vinho. Dentro dessa faixa climática, entre os paralelos 30 e 40° Sul, encontramos o Chile, a Argentina, o Uruguai, o Sul do Brasil, a África do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia, países que nas últimas décadas se tornaram grandes produtores mundiais e exportadores de vinho de alta qualidade. 

Estas duas regiões produtoras, conhecidas também como Paralelos do Vinho, durante muito tempo representavam uma espécie de garantia para a produção de bons vinhos. Entretanto, nos últimos anos, extremos climáticos, tanto no Hemisfério Norte quanto no Sul, têm criado problemas para o cultivo das uvas e prejudicado a produção de vinhos em todo o mundo. 

Tradicionais regiões produtoras de países como França, Espanha e Itália vem assistindo reduções tanto no volume quanto na qualidade de seus vinhos, Verões escaldantes, secas, geadas e invernos irregulares tem afetado a produção de uvas, com consequências diretas na qualidade dos vinhos. 

Por outro lado, regiões sem nenhuma tradição na produção de bons vinhos vem surpreendendo o mundo e os apreciadores da bebida. Um exemplo notório é o sul da Inglaterra, onde a atividade sempre foi taxada como medíocre pelos produtores europeus tradicionais. Os vinhos “made in England” vem evoluindo muito bem nos últimos anos. A região apresentou um crescimento de 60% na produção da bebida nos últimos anos. 

E as coisas não param por aí – a Noruega, país famoso por suas paisagens geladas e fiordes deslumbrantes, está assistindo o surgimento de parreirais em seus vales, onde as videiras estão crescendo bem e onde estão se instalando pequenos produtores de vinho.   

Aqui no Brasil, a Região Sul é a grande produtora de vinhos, com a Serra Gaúcha no Rio Grande do Sul respondendo por cerca de 80% da produção nacional. Outra região do Estado com produção relevante é a Campanha Gaúcha, no oeste sul riograndense. Também, é uma das regiões brasileiras onde as mudanças climáticas têm causado os maiores desastres. 

Todos devem ter memórias bem frescas das catastróficas enchentes vividas por grande parte do Rio Grande do Sul no ano passado. Cidades quase que totalmente cobertas pelas águas das enchentes, famílias ilhadas nos telhados de casas ou amontoadas em abrigos temporários. 

O que talvez muitos não saibam é que o Rio Grande do Sul vem convivendo com grave escassez de recursos hídricos já há várias décadas. Algumas regiões apresentam hoje paisagens mais parecidas com o Semiárido Nordestino do que com os Pampas Sulinos. Nesse momento, 61 municípios gaúchos estão enfrentando problemas relacionados com a estiagem. 

Como vem acontecendo na maioria das regiões produtoras do mundo, vinicultores e viticultores gaúchos correm contra o tempo para se adaptar a esses novos tempos. Parreirais estão sendo replantados em configurações que racionalizam o uso de água e dos solos; novas variedades de uvas desenvolvidas pela Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, que se adaptam melhor às novas condições climáticas, estão sendo testadas. 

Também estão sendo implantados novos sistemas de irrigação, onde são utilizados volumes de água menores e com perdas cada vez mais reduzidas. Unidades de produção de vinho estão sendo modernizadas, buscando uma eficiência cada vez maior e com custos significativamente mais baixos. 

A palavra de ordem é – quem não se adaptar às mudanças climáticas corre o risco de sair do mercado num futuro bem próximo. Que assim seja e que o vinho nosso de cada dia, seja lá de onde venha, continue presente em nossas mesas! 

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