“CARRO A ÁLCOOL: VOCÊ AINDA VAI TER UM!”

Quem é um pouco mais velho deve lembrar desse slogan. Ele fazia parte de uma campanha publicitária governamental do final da década de 1970, tempos do Pró-Álcool – Programa Nacional do Álcool. O Governo Federal há época buscava incentivar a venda e o uso de carros movidos a álcool, um combustível alternativo aos caros derivados de petróleo daqueles tempos. 

Entre 1986 e 1989, eu fui um dos “felizes” proprietários de um carro a álcool. Havia uma série de vantagens – o álcool, ou etanol, era mais barato que a gasolina e, mesmo consumindo mais, ainda era vantajoso em termos financeiros. Também havia um desconto no valor do famigerado IPVA – Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores. No geral, o carro andava até que muito bem – os problemas ficavam por conta dos dias frios do inverno paulistano: era difícil fazer o motor pegar! 

A atual produção mundial de álcool supera a marca dos 100 bilhões de litros/ano. As principais matérias primas usadas nessa produção variam muito. O milho é usado em países como os Estados Unidos e o Canadá; a cana de açúcar é a estrela aqui no Brasil e a beterraba e a batata em países da Europa. Um caso interessante é Israel, onde o álcool é extraído da alcachofra. Os Estados Unidos figuram na posição de maior produtor mundial com 58% da produção, seguido pelo Brasil com 27%, União Europeia com 5% e a China com 3%. O Estado de São Paulo é o maior produtor brasileiro de álcool, respondendo por 55% da produção nacional e por 13% da produção mundial. Essa relevante posição ocupada pelo Brasil foi criada pelo Pró-álcool – consulte a postagem anterior

A produção do álcool ou etanol começa com a extração do caldo das canas através de moendas mecânicas. Conforme comentamos em uma postagem anterior, o bagaço da cana resultante desse processo é queimado em usinas térmicas para a geração de eletricidade. O caldo da cana possui cerca de 15% do seu volume em sacarose e outros 15% na forma de fibras. Esse caldo é esterizado e purificado, passando depois para tanques de fermentação com leveduras do tipo Saccharomyces cerevisae e por fim para unidades de destilação. Cada tonelada de cana produz até 180 litros de álcool. 

O uso do álcool como combustível nos motores automotivos é uma ideia bastante antiga. Já em 1894, pesquisadores alemães tentaram desenvolver motores adaptados para trabalhar com álcool e, em 1899, foi realizada uma corrida nas ruas de Paris com a participação exclusiva de automóveis movidos a álcool. A ideia acabou não vingando por que o álcool de beterraba e de batata produzido na Europa tinha um custo bastante elevado. 

Durante a I Guerra Mundial (1914-1918), muitos veículos leves e carros blindados da França foram convertidos para funcionar com álcool combustível. O país enfrentava problemas com a importação de petróleo e, apesar do seu alto custo, o álcool podia ser fabricado no próprio país. Ao longo da década de 1920, a Inglaterra fez diversas experiências para o uso do álcool extraído das batatas como combustível automotivo, mas a ideia não prosperou – as batatas eram vitais para a alimentação da população. Durante a II Guerra Mundial, alemães e japoneses voltaram a utilizar o álcool como combustível devido à escassez de petróleo nos seus respectivos países. 

Aqui no Brasil, os primeiros experimentos com álcool combustível remontam à década de 1920. Na década de 1930, um decreto do Governo Vargas tornou obrigatória a adição de álcool à gasolina importada na proporção de 5%. Essa medida tinha como principal objetivo salvar o setor sucroalcooleiro de uma grave crise econômica, o que por fim levaria à criação do IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool em 1933. A criação do Pró-álcool em 1975, não foi uma novidade tecnológica tão grande assim, mas significou uma revolução na agricultura brasileira. 

Quando o primeiro carro movido exclusivamente a álcool ganhou as ruas brasileiras em 1979, nosso país produzia 6 milhões de toneladas de grãos e 2 bilhões de litros de álcool por ano. Por uma feliz coincidência do destino, data dessa mesma época o início da agricultura em larga escala na região do Cerrado brasileiro. A EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, lançou as primeiras sementes de soja e milho adaptadas aos solos ácidos e ao clima do Cerrado em 1975. 

Ocupando quase 2 milhões de km² de nosso território, as terras do Cerrado eram consideradas de baixíssima fertilidade e não valiam praticamente nada. A partir dos trabalhos feitos pela EMBRAPA, o bioma foi transformado na grande fronteira agrícola brasileira e num dos maiores celeiros de grãos do mundo. A expectativa da safra brasileira em 2021 é de quase 270 milhões de toneladas, a maior parte produzida em áreas do Cerrado. Já a produção de álcool para esse ano deverá superar a marca dos 30 bilhões de litros. Com o crescimento da produção de grãos no Cerrado, outras terras agrícolas do país ficaram “livres” para receber os grandes canaviais.

No auge do Pró-álcool, entre os anos de 1983 e 1988, mais de 90% de todos os automóveis vendidos no Brasil tinham motores a álcool. Ao final da década de 1990, esse número havia caído drasticamente e apenas 1% dos carros novos tinham motores a álcool. Entre as causas desse verdadeiro desmantelamento da política dos carros a álcool destacamos uma grande desvalorização do petróleo nos mercados internacionais, uma forte elevação do preço do açúcar (o que desestimulava a produção do álcool) e também mudanças na política de subsídios ao álcool. 

Um outro ponto de desestímulo ao carro a álcool foi a criação das políticas industriais para a produção de carros populares com motor de 1 litro ou 1.000 cilindradas. Além de receberem subsídios na forma de redução da carga tributária, esses carros eram extremamente econômicos quando estavam equipados com motores a gasolina, superando as vantagens do preço mais baixo do álcool nas bombas dos postos de gasolina. A situação das usinas produtoras de álcool só não foi pior por que havia sido criada uma resolução que obrigava a adição do combustível à gasolina na proporção de 25%

O antigo mantra repetido nas antigas propagandas governamentais que afirmava que todos iriam ter um carro a álcool acabou se transformando em uma espécie de maldição. Houve uma grande redução na produção de álcool e muitos postos de combustíveis nunca dispunham de álcool em suas bombas. Os preços dos carros com motor exclusivamente a álcool sofreram forte desvalorização – havia muita gente querendo vender e quase ninguém disposto a comprar. Ter um carro a álcool se transformou em um grande “mico”. 

Eu lembro de muitas oficinas que ofereciam o serviço de conversão de motores a álcool para gasolina por essa época. Basicamente, os mecânicos trocavam o carburador e ajustavam o ponto de ignição do motor, além de substituir as velas de ignição e o filtro de combustível. O serviço ficava bem “mais ou menos”, mas o carro ganhava uma boa sobrevida e o proprietário passaria a contar com a farta disponibilidade de gasolina nos postos de combustível. Caso surgisse algum problema mecânico mais grave, havia uma grande oferta de carros com motor a álcool a preços “de ocasião” – era só comprar outro veículo e fazer uma nova tentativa de conversão para gasolina.

A situação do álcool combustível só voltaria a entrar nos eixos novamente a partir do ano de 2003, quando passaram a ser vendidos os carros com o extraordinário Motor Flex, que funcionava tanto com gasolina quanto com álcool. Circuitos eletrônicos detectavam automaticamente o tipo de combustível ou a mistura presente no tanque, ajustando automaticamente o sistema de injeção eletrônica de combustível e os circuitos de ignição do motor. Em 2008 eu comprei um carro Flex e confesso que nunca tive qualquer problema ao longo dos 7 anos em que fiquei com esse veículo. Com essa opção de escolha, o proprietário do carro nunca ficava na mão e podia sempre escolher o tipo de combustível que melhor lhe conviesse. Essa nova tecnologia automotiva voltou a estimular a produção do álcool pelas usinas.

A história do álcool ou etanol para uso como combustível veicular aqui no Brasil teve muitos altos e baixos. Muita gente ganhou rios de dinheiro, especialmente os grandes usineiros; proprietários desses veículos chegaram a ter prejuízos; áreas de cultivo de grãos foram transformadas em canaviais; cidades e plantações em algumas regiões do país passaram a disputar o uso dos recursos hídricos, entre outros problemas. 

Entretanto, nos dias atuais, quando as questões ambientais ganham cada vez maior relevância em todo o mundo, ter um combustível ecológico como o álcool sendo usado por grande parte da frota de veículos do país (grande parte com motores Flex) não deixa de ser um ponto muito positivo. Podem até continuar falando das queimadas da Amazônia, mas o álcool é nosso e pode ser encontrado em praticamente qualquer posto de combustíveis do país.  

O Pró-álcool custou muito caro para o Brasil, mas a “fatura” já foi paga. Agora, é só encher o tanque do carro e “sair por aí”! 

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