VALE DO RIO MUCURI: O TERRITÓRIO DOS TEMIDOS ÍNDIOS BOTOCUDOS

A cerca de 60 km ao Norte da foz do rio São Mateus (ou Cricaré) encontramos a foz de um outro rio importante dessa região Leste do Brasil – o rio Mucuri. Totalmente inserido dentro do bioma Mata Atlântica, o rio Mucuri sofre atualmente com as grandes plantações de eucalipto e com a poluição gerada por grandes fábricas produtoras de papel e celulose, problemas que vem causando grandes embates com as populações tradicionais e pescadores. 

Entretanto, diferente da história ambiental dos rios Jequitinhonha e São Mateus, que têm como origem dos seus problemas os grandes desmatamentos e queimadas feitas para a criação de áreas de pastagens para o gado na região de suas nascentes entre os biomas Mata Atlântica e Caatinga, o rio Mucuri foi vítima, principalmente, da intensa exploração madeireira. Essa exploração teve início na segunda metade do século XIX, porém, sofreu um forte incremento a partir de meados do século XX. 

O rio Mucuri, ou “rio das raposas” na língua dos indígenas que habitavam a região, tem cerca de 320 km de extensão. Sua nascente principal, o rio Mucuri do Norte, fica em Ladainha, no Nordeste de Minas Gerais. O curso principal do rio recebe as águas do rio Mucuri do Sul, um afluente com nascentes em Malacacheta, também em Minas Gerais. O rio segue no sentido Leste, acompanhando a linha de divisa entre os Estados da Bahia e do Espírito Santo até desaguar no Oceano Atlântico em Mucuri, a cidade mais meridional do território baiano. 

Até meados do século XIX, as densas florestas de Mata Atlântica da bacia hidrográfica do rio Mucuri estavam praticamente intocadas. A razão disso era muito simples – a região estava “infestada” de botocudos, o temível povo indígena que dominava um extenso território entre o Sul da Bahia, o Norte do Espírito Santo e uma área entre o Nordeste e Leste de Minas Gerais.  

Devido aos intensos embates com colonizadores e forças militares ao longo dos séculos, diversas tribos de botocudos fugiram da faixa costeira e passaram a buscar refúgio nas matas ao longo das margens do rio Mucuri. E com esses temidos índios nessa região, os “brancos” procuravam ficar o mais longe possível desse rio. 

Os primeiros embates entre os índios botocudos e os colonizadores “brancos” (uso aspas aqui por que, além de brancos europeus, esse grupo incluía os pretos escravizados trazidos da África e os indígenas aculturados) remetem às tentativas de formação das Capitânias de Ilhéus e de Porto Seguro, no Sul da Bahia, em meados do século XVI. Os índios atacavam os vilarejos, igrejas e engenhos, matando colonos e incendiando as construções. Esses projetos coloniais foram abandonados pelos Donatários. 

Nasceu aqui o estigma do selvagem violento, primitivo e sanguinário, que além matar, desmembrava e comia suas vítimas em rituais antropofágicos. Essa imagem veio ao encontro de “estudos científicos” de vários filósofos europeus há época, que buscavam encontrar o limite entre os macacos e os humanos. Em fins do século XVIII, Cornelius de Pauw, um filósofo e geógrafo holandês, associou o canibalismo de indígenas americanos como os botucudos a um “fenômeno gerado pela fome e miséria de seres de natureza aviltada e degradada, mais próximos das feras que do homem.” 

Há mesma época, o antropólogo, naturalista e fisiologista alemão Johann Friedrich Blumenbach analisou o antigo crânio de um botocudo, que havia sido levado para a Europa por uma expedição científica anos antes, e afirmou se tratar de uma espécie de “elo perdido” entre os orangotangos e os seres humanos. Essas “supostas” características animalescas dos botocudos foram usadas, durante muito tempo, como uma espécie de justificativa moral para o seu extermínio pelos colonizadores “brancos”. 

Aqui é importante lembrar que o imaginário do europeu há época já estava repleto de imagens sobre os índios canibais das Américas. Cito o caso de Hans Staden, um aventureiro e mercenário alemão do século XVI, que acabou prisioneiro dos índios tupinambás por nove meses, quando presenciou diversos “banquetes” antropofágicos. Ao retornar à Alemanha, Staden publicou em 1557 um livro relatando as suas “aventuras” entre os índios – História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão. Apesar do título gigantesco, a obra foi um grande sucesso de venda.

A matança dos botocudos ganharia caráter oficial em 1808, quando uma das primeiras Cartas Régias editadas por Dom João VI logo após chegar ao Brasil estabelecia o “estado de guerra” contra esses índios. O governante, que provavelmente já conhecia muitas histórias sobre o canibalismo desses índios, ouviu inúmeras queixas de moradores de localidades ao longo do rio Doce. As descrições falavam dos horrores dos ataques, “ora assassinando os Portugueses, e os índios mansos por meios de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos“. 

Além de autorizar explicitamente o genocídio desses índios pelas tropas militares, a Carta Régia estabelecia bonificações aos comandantes das guarnições, que receberiam soldos extras em função da quantidade de índios mortos e/ou capturados. Como uma consequência direta dessa “legislação” Imperial, surgiu a figura do bugreiro, profissional da “iniciativa privada” que recebia um pagamento para cada índio abatido. A comprovação do trabalho executado poderia ser feita, por exemplo, mediante a apresentação das sui generis orelhas (conservadas em sal) dos botocudos mortos. 

As primeiras descrições científicas do rio Mucuri por naturalistas europeus começaram a ser feitas em 1815. O primeiro deles foi Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, um príncipe alemão que passou dois anos no Brasil entre 1815 e 1817. Ele explorou o Vale do rio Doce em 1816 e entrou em matas próximas ao rio Mucuri. Cerca de um ano depois, foi a vez do botânico francês Auguste de Saint-Hilarie explorar as bordas das matas na região das nascentes do rio Mucuri. Nenhum desses dois naturalistas, provavelmente impactados pelas histórias do canibalismo dos botocudos, ousou entrar mais fundo nas matas dessa região. 

Mesmo sem explorar o território desses índios, Saint-Hilarie deixou extensos relatos sobre os botocudos. Eles foram descritos como “nus, desfigurados, lambuzados de tintas, cílios arrancados, o lábio inferior tal qual uma pequena mesa de três polegadas de diâmetro, orelhas horrendas”. Segundo seus relatos, sabemos que os botocudos viviam em aldeias com população entre 50 e 100 indivíduos. As diferentes tribos falavam a mesma língua, sem constituir uma unidade política. Saint-Hilarie ainda ressalta o aspecto bárbaro da linguagem dos índios: devido ao uso do adereço de madeira no lábio inferior, a fala era áspera, com muitos tons nasais e guturais, produzindo “estrondos de voz que surpreendem quando a eles não se está acostumado“. 

O médico e explorador alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant, que realizou diversas expedições pelo interior do Brasil com apoio direto do Imperador Dom Pedro II, foi ainda mais longe na descrição dos botocudos. Segundo ele, esses índios eram “simples barrigas, gente cujo organismo, cuja estrutura existe apenas em função do ventre“. Por fim, Avé-Lallemant afirmou estar “chocado com a brilhante descoberta da existência de macacos de duas mãos”. 

Finalizando esse conjunto de registros “científicos” sobre os botucudos, temos o relato de Georg Wilhelm Freyreiss,  um naturalista alemão que acompanhou o Príncipe Maximilian em sua expedição através do rio Doce. Segundo Freyreiss, “o rude selvagem botocudo, habitante aborígene destas paragens, é mais formidável que todas as feras e o terror destas matas impenetráveis“. Em sua opinião, os botocudos, com seu aspecto monstruoso e repugnante, estariam “no limite do humano”. 

A história ambiental do rio Mucuri começaria a mudar em 1847, quando foi criada a Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri. Essa empresa passaria a explorar as rotas nos trechos navegáveis do rio e construiria estradas paralelas aos trechos não navegáveis, o que viabilizaria a exploração madeireira e a colonização da região. À frente dessa empresa estava Teófilo Ottoni. 

Trataremos disso na próxima postagem. 

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