ANHEMBI, O “RIO DAS ANHUMAS”, MAIS CONHECIDO ENTRE NÓS COMO RIO TIETÊ

Até o começo do século XVIII, os paulistas chamavam o rio Tietê de Anhembi, nome dado pelos indígenas do Planalto de Piratininga e que derivava da antiga palavra tupi-guarani “anhumby”, que significa “rio das anhumas”. Outrora abundantes em meio à vegetação das margens alagadiças do rio, a anhuma é uma ave anseriforme da família Anhimidae. Também é conhecida como anhuma, anhima, inhaúma e inhuma, palavras que derivam do tupi ña’un – “ave preta”. 

Infelizmente, faz muito tempo que não existem mais anhumas ou a maior parte da antiga fauna que habitava as margens do rio Tietê. O crescimento desenfreado da cidade, a retificação do curso do rio (vide foto) e a destruição das antigas várzeas alagáveis, além, sobretudo, da intensa poluição que tomou conta das águas do rio nas últimas décadas, tornou quase impossível a existência de vida nas suas águas. O Tietê é considerado o rio mais poluído do Brasil. 

Com nascentes na densa vegetação da Mata Atlântica no alto da Serra do Mar, em Salesópolis, o Rio Tietê poderia ser apenas mais um riachão sem maior importância caso corresse na direção do Oceano Atlântico, localizado a pouco mais de 20 km serra abaixo. O relevo acidentado e a altitude de 1.120 metros da Serra do Mar, porém, forçaram as águas do rio na direção contrária, atravessando todo o Estado de São Paulo rumo aos sertões, percorrendo uma extensão total de 1.136 km até encontrar sua foz no rio Paraná.  

Transformado num rio morto e poluído ao atravessar a Região Metropolitana de São Paulo, o Tietê consegue, naturalmente, depurar suas águas pouco a pouco e, na altura da cidade de Barra Bonita, distante 300 km da capital, ele volta a ser um rio vivo e irreconhecível para muita gente – um verdadeiro “milagre” da natureza. 

As águas do rio Tietê são usadas no abastecimento de dezenas de cidades no interior do Estado de São Paulo, na geração de energia elétrica, na irrigação de lavouras e captadas por inúmeras instalações industriais. Milhares de pescadores profissionais retiram seu sustento das águas do rio e outros tantos amadores se divertem em pescarias nos finais de semana. As águas limpas do rio, acredite se quiser, proporcionam lazer e diversão para muita gente, gerando grandes receitas para empresas dos ramos de turismo e hotelaria.  

Estudos arqueológicos indicam a presença humana nas margens do rio Tietê há, pelo menos, 6.000 anos, período em que diferentes grupos indígenas se sucederam na ocupação das várzeas e margens, onde encontravam terra fértil para a produção de suas culturas de subsistência, caça farta e muito peixe. O primeiro europeu a desembarcar em terras paulistas no início do século XVI, um náufrago português chamado João Ramalho, teve a sorte de ser acolhido pelos indígenas e a astúcia de entender rapidamente um antigo costume dos nativos – o cunhadismo.  

Sempre que um homem se casava, a família da noiva passava a considerá-lo com um membro da família, ou seja, todos os irmãos da noiva, os cunhados, passavam a ser seus irmãos. Cronistas da época registraram que João Ramalho, valendo-se deste artifício, se casou com várias índias de tribos diferentes e contava com uma “família” com 5 mil índios. Essa rede familiar de João Ramalho foi fundamental para a fundação e o sucesso futuro da Vila de São Paulo de Piratininga em 1554 e também no processo de catequese dos indígenas pelos padres jesuítas. 

A partir da fundação da Vila de São Paulo de Piratininga, o rio Tietê assumiu o papel de principal via de transporte da região do Planalto Paulista. O transporte entre as diversas vilas da região era facilitado pelo conjunto dos rios Tietê (chamado Anhembi na época), Tamanduateí e Pinheiros, que facilitavam as ligações entre as vilas de São Paulo de Piratininga, Santo André, São Miguel Paulista, Pinheiros, Santo Amaro, Carapicuíba, Santana de Parnaíba, entre outras.  

O rio Tietê também foi ponto de partida de inúmeras expedições de sertanistas da terra, que iniciaram um incansável trabalho de prospecção de riquezas minerais sertões adentro. Navegando nas famosas canoas monçoeiras, as expedições partiam do porto de Araritaguaba, Freguesia de Itu, hoje Porto Feliz, em São Paulo. O trecho do rio entre a cidade de São Paulo e Itu possui diversas cachoeiras, e permite uma navegação difícil apenas em canoas pequenas.  

O ilustrador e pioneiro da fotografia no Brasil, Hércules Florence (1804-1879), que nos legou os registros da Expedição Langsdorff (1825-1829), descreve alguns detalhes da construção destas canoas, arte ainda existente nas primeiras décadas do século XIX: 

“Os mestres do estaleiro fluvial de Porto Feliz e seus operários haviam preparado dois canoões com cinco pés de largo (1,65 m), cinquenta de comprimento (16,5m) e três e meio de profundidade (1,155 m), feitos de um só tronco de árvore de carvalho e trabalhado por fora, de fundo chato e pouca curvatura. Embarcações pesadas, muito fortes, ainda assim era comum não resistirem aos choques com as pedras impelidas com a rapidez das águas. “ 

O primeiro roteiro das monções paulistas seguia o trajeto pelos rios Tietê, Grande (Paraná), Anhanduí, e Pardo; atravessavam por terra os chamados Campos das Vacarias, e depois seguiam pelos rios Emboteteu (Miranda), Paraguai e Cuiabá. Foi seguindo este roteiro que os paulistas avançaram muito além da linha do Tratado de Tordesilhas, marco divisório estabelecido entre os territórios de Portugal e Espanha em 1494, e atingiram as terras distantes de Goiás, Mato Grosso e Amazônia Ocidental, ampliando os limites do atual território brasileiro. Sem o “caminho líquido” oferecido pelo rio Tietê, talvez o Brasil fosse muito menor do que é hoje. 

Além de importante via de transporte, as águas do rio Tietê eram fundamentais para as atividades agropecuárias dos antigos sitiantes do Planalto de Piratininga, para a dispersão de esgotos e de detritos. O rio também se destacava em outros usos: fornecimento de areia e argila para a construção civil. As antigas construções da pequena cidade eram feitas em taipa de pilão e em pau a pique. 

O rio Tietê também era um ponto de encontro para as lavadeiras de roupas, para os trabalhadores dos curtumes e tecelagens, pescadores, ceramistas ou oleiros, caçadores, entre muitas outras profissões que não existem mais. As crianças daqueles tempos antigos também tinham sua principal área de lazer no rio, onde podiam pescar e nadar. 

Já como fonte de abastecimento de água, o rio Tietê nunca teve uma importância maior. A Vila de São Paulo de Piratininga foi fundada num ponto elevado bem próximo do rio Tamanduateí, que até meados do século XIX foi o principal manancial de abastecimento da cidade. Talvez por causa disso, ele nunca tenha recebido o cuidado que merecia e acabou sendo transformado na grande valeta de esgotos de São Paulo e cidades vizinhas. 

Outro ponto que contribuiu, e muito, para a degradação das águas do rio Tietê dentro da Região Metropolitana de São Paulo foi a implantação das Vias Marginais, grandes avenidas construídas ao longo das margens do rio a partir da década de 1950. Essas avenidas afastaram as populações do contato diário com as águas do rio – a poluição das águas e o lançamento de esgotos, lixo e entulhos só fizeram aumentar depois disso. 

Nas últimas décadas, os diversos níveis de Governo têm feito grandes esforços para melhorar a qualidade ambiental do rio Tietê – o nível de coleta e tratamento dos esgotos gerados pela população vêm sendo gradativamente elevados, o que resulta em águas “menos poluídas”. A antiga mancha de poluição, que se estendia por cerca de 300 km nas águas do rio, está reduzida a perto de 150 km – melhorou muito, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. 

A esperança de todos é que o rio volte a ser novamente “tietê”, palavra indígena que significa “água verdadeira”. 

6 Comments

Deixe um comentário