OS SERINGUEIROS DA AMAZÔNIA, OU SEGUINDO O CANTO DAS SEREIAS

Seringueiros da Amazônia

A indústria gomífera, nome dado a todo o ciclo de atividades ligadas à exploração e processamento do látex, trouxe muita riqueza e prosperidade para as elites locais da Amazônia. A riqueza dessa elite equatorial foi construída com o látex, chamado “leite das árvores”, expressão usada para se referir à seiva das árvores da espécie Hevea brasiliensis, a famosa seringueira, e com o sangue de dezenas de milhares de migrantes trazidos, majoritariamente, dos sertões do Nordeste e largados à sua própria sorte nos confins da floresta. Esses trabalhadores eram recrutados muitas vezes em suas próprias cidades por algum amigo ou parente, onde recebiam promessas de um bom trabalho e de exuberantes lucros. Acompanhem um desses casos:

João Gabriel de Carvalho e Melo, um cearense natural de Uruburetama, é um exemplo do aventureiro que largou tudo para se embrenhar pelas matas da Amazônia em busca das árvores produtoras do látex. Ele mudou-se para Belém do Pará em 1847. Trabalhando em Belém, João Gabriel começou a ouvir histórias sobre as riquezas geradas pela exploração do látex nas florestas. Ele acabou entorpecido com o sonho de fortuna e passou a buscar todas as informações disponíveis sobre as seringueiras, o corte e a extração do látex, a defumação para a formação das pélas, muitas vezes chamadas de pélas de borracha, e tudo mais que fosse possível aprender.

Em 1852, João Gabriel se embrenhou na Floresta Amazônica, navegando pelos imensos rios, quando acabou atingindo o rio Purus. Este rio, em particular, o deixou impressionado dada a quantidade de seringais nativos que possuía ao longo das suas margens. João Gabriel decidiu que seu futuro estava ali. Ele voltou primeiro para Belém e depois foi para o Ceará, onde começou a agregar familiares e conhecidos que estivessem dispostos a abandonar os sertões do Semiárido Nordestino e tentar a sorte na  Amazônia. As histórias de opulência da Floresta Amazônica que esses recrutadores de mão-de-obra contavam lembravam as antigas lendas das sereias, criaturas míticas que atraíam os marinheiros para uma morte certa através do seu irresistível canto. Os primeiros conquistadores da Amazônia, inclusive, imaginavam que os peixes-boi eram essas mitológicas criaturas.

Depois de vários anos de trabalho até que conseguisse reunir os recursos financeiros para essa grande empreitada, em 6 de fevereiro de 1878, João Gabriel e sua imensa comitiva de parentes e amigos parte de Belém a bordo do vapor Anajás, e seguem até a região conhecida como Boca do Acre, no alto rio Purus, nas proximidades da foz do rio Acre. É ali que é fundado o primeiro seringal do Acre – o Anajás. João Gabriel se tornou assim, uma figura importante na história local, tendo tido uma importante participação na chamada Independência do Acre e também na fundação de diversas cidades como Lábrea, no Estado do Amazonas. O Comendador João Gabriel de Carvalho e Melo faleceu em 1894 em seu seringal – o Anajás.

A história de sucesso desse pioneiro e empreendedor da indústria de exploração do látex amazônico, assim como a de muitos outros senhores da borracha, esconde toda uma grande estrutura de exploração da mão-de-obra dos seringueiros, que estava muito próxima da escravidão. Essa “escravização” começava com o processo de contratação dos trabalhadores em seus Estados de origem. O contrato de trabalho previa um “adiantamento” de salários para o pagamento das despesas de viagem, alimentação, ferramentas, alojamento e suprimentos para os primeiros meses nas áreas de exploração do látex. O trabalhador já chegava altamente endividado nos seringais e teria de trabalhar duro para realizar os pagamentos na forma de pélas de borracha.

Uma outra armadilha do sistema se dava através dos armazéns de secos e molhados dos seringais, que pertenciam aos senhores da borracha e que vendiam as mercadorias a preços exorbitantes. Os trabalhadores tinham uma “conta”, onde eram lançados todos os valores gastos em produtos – esses gastos seriam abatidos dos ganhos que conseguisse auferir com a produção das pélas de borracha. Por mais que estendessem suas jornadas diárias de trabalho extraindo látex das árvores e contassem com a ajuda de familiares para a defumação das pélas de borracha, as contas nunca fechavam e os seringueiros viviam eternamente endividados junto aos patrões. O segredo para esse endividamento contínuo, que prendia o seringueiro ao patrão, era o subfaturamento do valor das pélas pelos seringalistas.

De acordo com relatos da época, cada família de seringueiro recebia a cada três meses: 3 sacos de farinha, 1 saco de feijão, 1 saco pequeno de sal, 1 saco de arroz, 8 latas de banha e 20 gramas de quinino (usado para tratamento da malária). Carnes só eram consumidas quando se tinha a sorte de caçar ou pescar alguma coisa. Plantar ou produzir qualquer tipo de alimento nos seringais era absolutamente proibido – essa ocupação prejudicaria a produção do látex e concorreria com os produtos vendidos nos barracões. As famílias dos seringueiros costumavam ser muito grandes, com proles entre 10 e 15 filhos e era praticamente impossível sobreviver decentemente dentro dessas condições de trabalho.

Vinte anos depois da chegada pioneira de João Gabriel de Carvalho e Melo, o Acre contaria com cerca de 400 seringais no vale do rio Juruá e pelo menos 100 no vale do rio Acre – os brasileiros haviam invadido e colonizado o longínquo e isolado território que, naquela época, pertencia à Bolívia. Essa verdadeira invasão de seringalistas e seringueiros brasileiros no território boliviano gerou inúmeros problemas diplomáticos com o país vizinho – entre outros conflitos, como a Independência do Acre, uma questão que só seria resolvida em 1903 com a assinatura do Tratado de Petrópolis, quando o Brasil pagou 2 milhões de libras esterlinas pelo território acreano, cedeu terras na fronteira do Mato Grosso para a Bolívia e assumiu a construção da Ferrovia Madeira-Mamoré

Os seringalistas vendiam a sua produção para as Casas de Aviamento de Manaus e Belém, que pagavam parte em dinheiro e parte em alimentos, ferramentas, roupas, produtos de luxo para as casas dos Coronéis – é claro que estes produtos todos tinham seus preços superfaturados. Já as Casas de Aviamento, essas vendiam as pélas de látex para as Casas Exportadoras, que vendiam toda a produção para empresas nos Estados Unidos, Europa e Japão. Essa estrutura fez a fortuna de muita gente e transformou Manaus e Belém em cidades muito prósperas. No final do século XIX, Belém era uma cidade do tamanho de Madrid, com avenidas largas, jardins, iluminação elétrica, rede telegráfica e linhas de Bonde. Manaus não ficava atrás – em 1892, a cidade já contava com redes de água e esgotos, iluminação e bondes elétricos, cafés e restaurantes sofisticados – muitos chamavam a cidade de “a Paris das Selvas”.

Essa grande infraestrutura que surgiu rapidamente e que permitia a exploração, produção e exportação de grandes volumes de látex desde os confins mais distantes da Floresta Amazônica até os grandes centros econômicos do mundo, só foi possível graças a imensa rede de rios da Bacia Amazônica. O tráfego das “modernas” embarcações a vapor pelos rios da Bacia Amazônica era tão importante há época, que o Governo Imperial se viu obrigado a alterar a legislação do país para facilitar o acesso das companhias internacionais de navegação. Com o objetivo de dinamizar ainda mais as exportações do látex da Amazônia, o Imperador Dom Pedro II assinou, em 1873, um decreto autorizando o tráfego de navios mercantes de todas as nações nos rios da Amazônia.

Nas últimas décadas do século XIX, as exportações do látex respondiam por 25% do total de exportações do país, só perdendo para o café, produto responsável por 50% de nossas receitas. Essa riqueza, é claro, estava nas mãos dos grandes seringalistas, donos de Casas de Aviamento e Exportadores. Contam-se algumas histórias de certos Coronéis da Borracha que usavam altas notas de Réis para acender seus charutos. Dizem até que estes Coronéis mandavam lavar as suas roupas nas lavanderias de Paris.

A opulência e a riqueza gerada pela exploração, processamento e exportação do látex começaram a ruir já em 1913, quando os seringais ingleses de territórios do Sudeste asiático superaram a produção brasileira. Com o desmonte brusco da indústria gomífera, centenas de milhares de seringueiros dispersos pelos quatro cantos da Amazônia foram, simplesmente, esquecidos e largados ao “Deus dará”. Montanhas de pélas de borracha, formadas com muito sangue e suor ao longo de vários meses de trabalho, passaram a valer nada e os carregamentos com as parcas rações de víveres nunca mais chegaram. Esses seringueiros e suas famílias chegaram à Floresta Amazônia com o objetivo de trabalhar alguns anos, juntar dinheiro e depois voltarem para suas terras de origem.

Mas, ao contrário do que imaginavam, a passagem foi só de ida…

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

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