UMA BREVE HISTÓRIA DAS ENCHENTES NA CIDADE DO RECIFE

Enchentes no Recife

Nesses últimos dias, a Região Metropolitana do Recife, mais uma vez, está sendo assolada por fortes chuvas e pelas já tradicionais enchentes de sempre. Uma das consequências desse excesso de chuvas são os deslizamentos de encostas – até a última sexta-feira (26/07/2019), já havia sido contabilizadas 12 mortes, a maioria formada por vítimas desses deslizamentos. 

A história da cidade do Recife é muito parecida com a de outras grandes cidades localizadas ao longo da extensa costa do Brasil. Já nos primeiros anos após o descobrimento, exploradores portugueses passaram a percorrer o nosso litoral, mapeando a costa, batizando pontos geográficos e, principalmente, buscando locais adequados para fundear os grandes navios. Apesar de muito grande, a costa brasileira não possui quantidades expressivas de áreas naturais com condições técnicas ideais para a construção de portos, especialmente baías e estreitos entre ilhas e o continente. Em grande parte do litoral do Nordeste, as dificuldades para fundear os navios eram aumentadas pela presença de grandes formações de recifes de coral ao largo da costa. 

No litoral de Pernambuco, os antigos cartógrafos haviam identificado uma região que combinava duas características excepcionais para a fundação de uma grande cidade – uma área abrigada na foz de um grande rio e com grande capacidade para receber embarcações de alta tonelagem. Exatamente ao lado, um terreno elevado, que possibilitava o monitoramento de uma grande extensão de terras e mares. No alto dessas ladeiras, Duarte Coelho, o Donatário da Capitânia de Pernambuco, fundou a cidade de Olinda em 1535. Na carta dos direitos feudais – o foral, concedido por Duarte Coelho em 1537, havia uma referência a um certo “Arrecife dos Navios”, uma pequena vila de marinheiros e pescadores, que se transformou no embrião da futura Cidade do Recife

Na época da fundação da Capitânia de Pernambuco, o açúcar era um dos produtos mais valorizados do mercado mundial e o principal objetivo do Reino de Portugal para a sua grande Colônia americana era transformá-la num dos maiores centros de produção açucareira do mundo. Nesta época, Portugal já tinha perto de quatrocentos anos de experiência com o produto. Existem documentos históricos que comprovam a existência de plantações de cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) na região do Algarves, Sul de Portugal, desde o ano de 1159, quando Dom João I arrendou terras para um mercador genovês de açúcar – João de Palma

Em 1425, as primeiras mudas de cana chegaram na Ilha da Madeira, que rapidamente se tornou um grande centro de produção e exportação de açúcar. Um detalhe histórico interessante é que o italiano Cristóvão Colombo, que se tornaria o célebre navegador a serviço da Coroa de Espanha que descobriria a América, começou sua carreira como um marinheiro em navios que transportavam o açúcar da Ilha da Madeira para a Europa. Em 1460, os canaviais chegaram ao Arquipélago dos Açores e em 1493 nas Ilhas São Tomé e Príncipe na costa africana. O desembarque da planta em terras brasileiras seria apenas uma questão de tempo. 

A Região Nordeste do Brasil, já no início do século XVII, passou a ser considerada como uma das maiores produtoras mundiais de açúcar. Um relatório do ano de 1620 das Autoridades Coloniais informava que “em três Capitanias (Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), havia uma produção de 500 mil arrobas de açúcar (equivalente a 7,5 milhões de toneladas), que bastaria para carregar todos os anos 130 a 140 naus.” O relatório prossegue informando a área ocupada com o cultivo da cana-de-açúcar: “50 ou 60 léguas de costas ocupadas (entre 300 e 360 km), e dentro de 10 léguas para o sertão (60 km).” Feitos os devidos cálculos, chegamos a uma área total entre 18 e 21,6 mil km² – para efeito de comparação, a área do Estado de Sergipe corresponde a 22 mil km². As primeiras notícias sobre canaviais na Região Nordeste datam do ano de 1535, o que demonstra o vertiginoso crescimento das atividades açucareiras. 

Para abertura dos campos agrícolas onde seriam formados os canaviais, grandes extensões de mata foram derrubadas a “ferro e a fogo” – e é justamente aqui que tem início a história das grandes enchentes na região conhecida com Zona da Mata. Sem a proteção da cobertura vegetal nativa, as águas das fortes chuvas passariam a correr diretamente para a calha dos rios, levando junto grandes volumes de sedimentos dos solos desnudos. Esse processo contínuo criou uma série de problemas ambientais e econômicos: esses sedimentos carreados pelas chuvas formavam os solos férteis de massapê – as terras perdiam rapidamente a fertilidade, o que reduzia a produtividade dos canaviais. Para repor os estoques de terras férteis, era necessária a derrubada contínua de novas áreas de mata, o que amplificava ainda mais os problemas de erosão de solos e assoreamento dos canais de rios como o Capibaribe, Beberibe, Una e Ipojuca

As enchentes na região passaram a fazer “parte da paisagem”. O primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”. Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966 (vide foto), 1970, 1975, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e esses são apenas alguns exemplos.  

Com a forte urbanização das cidades da Zona da Mata a partir das primeiras décadas do século XX, os problemas foram sendo ampliados – grandes trechos de encostas de morros passaram a ter seus fragmentos florestais derrubados para a construção de moradias populares. Sem um planejamento urbanístico adequado e sem uso de técnicas construtivas apropriadas às características técnicas dos solos, centenas de bairros foram surgindo nos morros do Recife, Olinda e outras cidades da Região Metropolitana. Os desmoronamentos de encostas e o soterramento de casas e pessoas nos períodos das chuvas passaram a ser comuns, aumentando os já tradicionais dramas das enchentes. 

Depois de todo esse grande conjunto de alterações no meio físico, que associam a devastação das áreas florestais, o assoreamento dos canais de drenagem e, mais recentemente, a ocupação das encostas de morros com habitações, a única forma de se amenizar os problemas criados pela chegada das chuvas é a construção de grandes obras de infraestrutura, como as barragens de armazenamento de água. Se efetivamente construídas, essas barragens resolveriam dois problemas simultaneamente: acumulariam a água excedente das chuvas, evitando as enchentes, ao mesmo tempo que garantiriam estoques de água para o abastecimento das populações nos períodos de seca

Em Pernambuco, Estado que está entre os mais atingidos pelas fortes chuvas nesse ano, estava prevista a construção de barragens para o controle de cheias nos rios Una, Pirangi, Sinharém e Panelas. De todos os projetos anunciados, somente a Barragem de Serro Azul, no rio Una, ficou pronta. Os demais projetos – Igarapeba, Panelas II, Gatos e Barra de Guarabirapa, ou não saíram do papel ou acabaram com obras iniciadas e não concluídas. Além da conclusão dessas obras, também seria necessária a remoção de milhares de famílias que vivem em áreas de risco nas encostas dos morros das cidades. Como praticamente nada do deveria ter sido feito foi efetivamente feito, as enchentes, os deslizamentos de encostas e as mortes provocadas pelas chuvas continuam sendo uma dura realidade na vida da Região Metropolitana do Recife. 

O drama das enchentes é o resultado de centenas de anos de agressões sistemáticas ao meio ambiente e não vai ser de uma hora para outra que as coisas irão se resolver – muito trabalho terá de ser feito para resolver todos esses problemas já existentes e outros que ainda virão. 

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