AS BOIADAS DO SERTÃO NORDESTINO E A QUEIMA DOS CAATINGAIS

Gado na Caatinga 1

O plantio intensivo da cana-de-açúcar para a produção do valioso açúcar foi a primeira atividade econômica relevante em terras brasileiras. As primeiras mudas de cana e os primeiros exemplares de gado vacum chegaram ao Brasil nas mesmas naus que trouxeram os primeiros Donatários das Capitânias Hereditárias, no início da década de 1530. Foi esse plantio intensivo de cana-de-açúcar nas terras do litoral do Nordeste, especialmente no trecho entre o Recôncavo Baiano e o Rio Grande do Norte, o principal responsável pela destruição do trecho de Mata Atlântica que cobria originalmente essas terras.  

Conforme já apresentamos em postagem anterior, a destruição da floresta pela força dos machados e do fogo das grandes queimadas, levou junto os preciosos e profundos solos de massapê, que, expostos às chuvas e às enxurradas e usados com técnicas agrícolas das mais inadequadas, resultaram esgotados ou foram carregados para o leito dos rios e depois para o mar. Destruiu-se a mata, enfraqueceu-se os solos e perderam-se muitos rios – os grandes senhores da terra e os nobres de Portugal ganharam montanhas de dinheiro; para as sucessivas gerações de brasileiros que ali nasceram, restou um enorme passivo ambiental e muita pobreza vindoura. Esse foi um processo que durou cerca de dois séculos e que teve muitas facetas – uma delas foram os sucessivos conflitos entre os plantadores de cana-de-açúcar e os criadores de bois, embate esse que acabou desencadeando um processo de destruição de outro bioma – a Caatiga. 

Os problemas entre a criação de gado bovino e as plantações de cana-de-açúcar nos tempos do Brasil colonial são bem fáceis de entender: esses animais se alimentam basicamente da grama das pastagens, mas, dada a oportunidade de se invadir um campo agrícola com brotos tenros e açucarados de cana-de-açúcar, os rebanhos faziam a festa. E como o açúcar era o produto mais valioso daqueles tempos, os grandes senhores dos engenhos não ficavam nem um pouco satisfeitos com essas “quebras” de produção de cana-de-açúcar. Com o poder econômico e social que tinham, os donos dos engenhos tudo faziam para manter as boiadas o mais longe possível de suas terras. Conforme a área de plantio de cana se expandia, ocupando cada vez mais a faixa da Mata Atlântica, esse “longe” ficava cada vez mais sertões a dentro

O conflito entre os criadores de gado e os senhores dos grande engenhos de açúcar atingiu seu ápice em 1701, quando foi editada uma Carta Régia pelo rei de Portugal, Dom Pedro II (que não tem nada a ver com Dom Pedro II, o último Imperador brasileiro), proibindo a criação de gado a menos de 10 léguas do litoral. Existem diversas medidas para a légua antiga, tanto para uso terrestre quanto marítimo, com valores entre 6 e 7 km – considerando esses valores, temos que as criações de bois teriam que ficar entre 60 e 70 km do litoral, já entrando nos domínios do Semiárido. Através dos termos dessa Carta Régia, o Rei de Portugal deixava muito claro que as terras do litoral estavam reservadas exclusivamente para o plantio da cana e a produção do açúcar – os incomodados que se mudem, como se diria numa linguagem bem popular. 

E, literalmente, foi isso o que aconteceu – cada vez mais, os criadores e suas boiadas tomavam o rumo em direção aos sertões do Nordeste, buscando os locais mais adequados para viver. É aí que começaram os problemas das terras cobertas por vegetação de caatinga, com suas árvores de galhos retorcidos e com muitas espécies de cactáceas – entre as matas com esse tipo de vegetação, existiam poucos campos abertos com gramas para a pastagem dos animais. Se você já viu um boi de perto, deve ter uma ideia da quantidade diária de grama que esse animal precisa comer para sobreviver. 

Além da falta de pastagens, os caatingais formavam verdadeiros labirintos, com galhos espinhentos e de difícil travessia, onde os animais se perdiam e/ou se machucavam. Essa vegetação é tão “agressiva” que os vaqueiros nordestinos acabaram desenvolvendo uma vestimenta de trabalho de couro grosso, que é uma verdadeira armadura – o gibão. A solução encontrada para ampliar artificialmente os campos de pastagem e abrir os caminhos foi o início de um processo contínuo de queimada dos caatingais

A queima da vegetação para a preparação de campos agrícolas é uma técnica milenar, usada por povos de todo o mundo. Os indígenas brasileiros usavam o fogo para limpar grandes trechos de mata, técnica chamada por eles de coivara, onde eram plantadas culturas de milho e mandioca nas áreas limpas, alimentos de subsistência desses povos, que se juntavam ao que se obtinha com a caça e com a pesca. As cinzas resultantes dessa queima da caatinga proporcionava uma adubação temporária dos solos, que ajudava no crescimento da grama e de outras vegetações rasteiras que o gado consumia. Sistematicamente, novas áreas de caatinga precisavam ser queimadas para a renovação dos pastos e para comportar o crescimento contínuo dos rebanhos. De campo em campo, imensas regiões do Semiárido viram suas paisagens transformadas em campos gramados. 

E como tudo na vida e na ecologia tem um preço, muitas dessas áreas de caatingais que foram transformadas em campos, agora estão se transformando em desertos. Falaremos desse processo de desertificação de terras na nossa próxima postagem. 

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