Eu participei por cerca de dez anos, nos já bastante longínquos tempos da adolescência, das atividades de um clube similar ao dos escoteiros – o Clube dos Desbravadores. E como garoto de cidade grande, adorava as viagens e acampamentos nas regiões de matas ao redor da Região Metropolitana de São Paulo – muito do que hoje eu sei sobre meio ambiente e recursos hídricos foi fruto dessas viagens. Nos acampamentos com o Clube, uma das atividades mais temidas eram as rondas da madrugada, quando alguns garotos eram escolhidos para ficar de segurança à noite, enquanto a maioria dormia confortavelmente nas barracas.
Numa dessas rondas noturnas em um acampamento em São Lourenço da Serra, cidadezinha a aproximadamente 80 km do centro de São Paulo, passei por um susto terrível: um pontilhão de madeira num dos acessos ao nosso campo apresentava, de vez em quando, uns estalidos fortes como uma rajada de metralhadora. Sempre que o ruído aparecia, eu e meu companheiro de ronda apontávamos as lanternas e não víamos nada. Foi só na manhã seguinte, depois de muito medo (as histórias de fantasmas e assombrações são muitas nesses acampamentos), é que descobrimos a fonte do barulho – uma grande araucária ou pinheiro-do-paraná, exatamente ao lado do pontilhão, soltava dezenas de pinhões a cada sopro mais forte do vento e as sementes “pipocavam” sobre o piso de madeira.
A Araucaria angustifolia é uma espécie de árvore classificada como gimnosperma , ou seja, cujas sementes possuem uma casca dura e não são protegidas pela polpa dos frutos (a grande maioria das árvores são classificadas como angiospermas, ou seja, que produzem frutos com sementes). É uma espécie adaptada para regiões de clima subtropical, com temperaturas mais baixas nos invernos, encontradas comumente nos planaltos da região Sul do Brasil, especialmente nos Estados do Paraná e de Santa Catarina, e também nas regiões serranas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A madeira dessas árvores é de ótima qualidade e foi utilizada intensamente pelas indústrias moveleiras do Sul do Brasil. Foi justamente essa exploração da madeira e a derrubada das matas para a criação de áreas agrícolas as principais responsáveis pelo desaparecimento da maior parte da chamada Mata das Araucárias no Sul do Brasil.
A Mata das Araucárias é um dos muitos sistemas florestais formadores da Mata Atlântica, a antiga floresta que cobria grande parte da faixa Leste do Brasil, desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte, com muitos trechos entrando pelo continente e chegando até áreas da Argentina e do Paraguai. Estima-se que as araucárias chegaram a cobrir cerca de 40% do território do Paraná, onde aliás a árvore é um dos símbolos do Estado, 30% da superfície de Santa Catarina e 25% do Rio Grande do Sul. Nessas regiões, as araucárias costumavam crescer consorciadas com uma outra espécie extremamente importante para as populações sulinas – a erva-mate, matéria prima do famoso chimarrão.
A semente da araucária, o pinhão, é um alimento extremamente importante na culinária da região Sul e também em extensas áreas do Estado de São Paulo. Ele pode ser comido puro após ser cozido em água ou ser incluído em inúmeras receitas de carnes, sopas, pães e bolos, entre uma infinidade de receitas. Os índios das etnias do grupo linguístico jê, que possuíam diversas tribos na região Sul do Brasil, eram ávidos comedores de pinhão e, com a chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis, acabaram ensinando muitos desses hábitos alimentares aos recém chegados. Muitos desses índios construíam casas subterrâneas para se proteger dos ventos gelados e, involuntariamente, acabaram se transformando em plantadores de araucárias – sementes caíam no chão e acabavam brotando. Porém, o grande plantador das araucárias é na verdade uma ave – a gralha-azul (vide foto).
A gralha-azul (Cyanocorax caeruleus) é uma ave com aproximadamente 40 cm de comprimento, com coloração das penas do corpo de um azul vivo e com a cabeça, a parte frontal do pescoço e partes do peito na cor preta. Essas aves costumam viver em pequenos bandos, se alimentando de frutas, insetos e, especialmente, dos pinhões das araucárias. Durante os meses de outono, época em que as araucárias produzem os pinhões, as gralhas-azuis coletam os pinhões e os “estocam” em áreas delimitadas do solo ou os encravam em troncos caídos no solo, criando assim uma reserva de alimentos para o período do inverno. Muitos desses pinhões acabam esquecidos pelas aves e germinam, produzindo novos exemplares de araucárias.
Infelizmente, esse fantástico mecanismo de interdependência de espécies criado pela natureza, através de um longo processo evolutivo, está seriamente ameaçado – a Mata das Araucárias está reduzida a cerca de 4% da sua antiga área original. Com a destruição do seu habitat e sem um dos seus mais importantes alimentos – o pinhão, as populações de gralha-azul encontram-se ameaçadas de extinção e está sendo cada vez mais difícil encontrar grupos dessas aves livres na natureza.
O desaparecimento de um sistema florestal tão importante e bonito como a Mata das Araucárias, que leva junto todo um conjunto de espécies vegetais e animais como as simpáticas gralhas-azuis, é um exemplo vivo dos grandes impactos da agricultura no meio ambiente. É provável que as novas gerações só venham a conhecer muitos desses animais em jardins zoológicos e as imponentes araucárias só serão lembradas a partir das histórias de velhos acampantes como eu.
Que triste sina!
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