Associar o rio Nilo ao Egito é uma espécie de “fenômeno” que atinge a maioria das pessoas. Lembro bem das aulas de história no ensino fundamental, onde era comum o uso de imagens de pirâmides e templos egípcios construídos na beira do Nilo. Inúmeras referências históricas, religiosas e culturais ao longo da história reforçam e salientam essa percepção. A geografia, porém, tem uma posição divergente: além do Egito e do Sudão, que em menor escala também é associado diretamente ao rio, a bacia hidrográfica do Nilo engloba outros sete países – Etiópia, Uganda, Tanzânia, Quênia, República Democrática do Congo, Burundi e Ruanda. Divergências crescentes sobre os usos das águas do rio Nilo entre essas nações têm potencial, para em um futuro muito próximo, se transformar em um grave conflito armado regional.
Conforme comentamos na postagem anterior, o Egito depende quase que exclusivamente das águas do rio Nilo para dessedentar e alimentar sua população de quase 100 milhões de habitantes, além de gerar eletricidade para um país pobre em recursos naturais. Grande parte das receitas do país, que vêm do setor do turismo, tem no vale do rio Nilo as suas principais paisagens e atrações. O grande problema na região é que outros 400 milhões de pessoas, soma das populações dos outros países que formam a grande bacia hidrográfica do Nilo, dependem também, em grande parte, das águas deste importante rio. Explico:
Entre 1882 e 1952, o Egito esteve sob a administração colonial do Império Britânico, domínio esse que se estendia rumo ao Sul e incorporava grande parte da região, incluindo o Sudão Anglo-Egípcio, Uganda e África Oriental Britânica – no meio dessa grande região, existia um enclave independente, o Reino da Abissínia (atual Etiópia), e colônias da Bélgica. Entre os países que formam a atual bacia hidrográfica do rio Nilo – Egito, Sudão, Etiópia, Uganda, Tanzânia e Quênia, foram formados a partir do desmantelamento dessa estrutura colonial britânica; a República Democrática do Congo, Ruanda e Burundi, são ex-colônias belgas.
A fim de atender aos seus próprios interesses, o Governo Britânico criou um “tratado” para a divisão das águas do rio Nilo, onde 80% do recurso ficava reservado para o Egito e o Sudão. Além do uso pleno das águas do rio, esses países passaram a ter o direito de vetar quaisquer projetos de aproveitamento hidráulico a montante da bacia hidrográfica que, eventualmente, pudessem contrariar seus interesses. Esse “tratado” foi reconfirmado em 1959 e os demais países foram obrigados a se conformar com os 20% restantes das águas do rio Nilo. Não houve qualquer critério geográfico, tanto em aspectos físicos quanto humanos, que justificasse esses percentuais – a partilha das águas seguiu exclusivamente interesses políticos e econômicos dos ingleses.
Essa situação, absolutamente insustentável, começou a ruir na década 1990, quando os demais países iniciaram um tímido esforço de unificação de suas vozes, contestando juntos os termos vigentes da partilha das águas do rio Nilo. Essas nações passaram a fazer seus próprios planos para utilização das águas do rio Nilo no interesse dos seus respectivos povos. Entre todos os projetos anunciados, nenhum foi tão longe quanto os da Etiópia, país que iniciou em 2011 a construção de uma grande usina hidrelétrica no Nilo Azul, o mais caudaloso tributário do rio Nilo e responsável por 86% do seu fluxo de água.
A Barragem Grande Renascença (vide foto), a maior do continente africano, gerará cerca de 6 mil MW de energia elétrica, um recurso indispensável para o desenvolvimento da Etiópia. A obra, que já se encaminha para a fase final, poderá provocar uma verdadeira “seca” no baixo rio Nilo, a depender dos critérios que serão adotados para o fechamento das comportas para o enchimento do lago, que terá cerca de 250 km de extensão. Em 2015, inclusive, Etiópia, Egito e Sudão estabeleceram um acordo para a realização de um estudo independente para a avaliação dos impactos ambientais da obra – para irritação de egípcios e de sudaneses, os prazos estabelecidos venceram e os respectivos estudos não avançaram.
Além da Etiópia, outros países também se movimentam por conta de seus próprios projetos, especialmente com vistas ao desenvolvimento de sistemas de irrigação para grandes projetos agrícolas, além de sistemas de geração de energia elétrica. Há aqui um detalhe importante – grupos empresariais da China e dos países ricos do Golfo Pérsico estão por trás de muitos desses projetos. Conforme comentamos em postagem anterior, a China tem fortíssimos interesses na produção de grãos na África para abastecimento de sua população e se transformou na maior investidora estrangeira no continente. A China, inclusive, é a grande financiadora de obras de infraestrutura na Etiópia, especialmente ferrovias e rodovias (oficialmente, essa hidrelétrica não tem participação da China). Essa “ajuda” dos chineses pode, sem exageros, estar jogando gasolina no “incêndio” já criado pela ferrenha disputa pelas águas do rio Nilo.
Uma crise pela partilha de água que envolve os diferentes interesses políticos e econômicos de 9 países, que juntos têm uma população total de 500 milhões de pessoas, poderá ter gravíssimas consequências – uma guerra regional de grandes proporções, desgraçadamente, é uma delas.
Torçamos sempre pela paz.
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[…] problemas do rio Nilo começam com a intensa disputa pelo controle de suas águas. Além do Egito, país que tem sua vida e história ligados umbilicalmente com o rio, a bacia […]
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