A NAVEGAÇÃO PELO LENDÁRIO RIO MISSISSIPI

Mississipi River

Sempre que penso no rio Mississipi, me vêm a mente as histórias que li e os filmes que vi na infância, que contavam as aventuras de Hucklberry Finn, o célebre personagem criado por Mark Twain. Também visualizo os antigos navios a vapor (vide foto) que singravam suas águas já em meados do século XIX. Na narrativa, que é considerada um divisor de águas na literatura americana, Hucklberry foge de casa para se livrar do pai alcoólatra, e, na companhia de Jim, um escravo fugitivo, vive uma longa aventura viajando de balsa pelas águas do Mississipi. O grande rio, que aliás é o significado da palavra Mississipi em línguas de diversos povos nativos americanos, ocupa papel de ator coadjuvante na narrativa. 

A bacia hidrográfica do rio Mississipi é uma das maiores do mundo, ficando atrás apenas das bacias do rio Amazonas e do rio Congo, na África. O rio Mississipi tem aproximadamente 3.800 km de comprimento, ocupando a segunda posição na lista dos maiores rios da América do Norte. Entre seus principais afluentes destacam-se o rio Missouri, o maior rio do continente norte americano, e os rios Ohio, IllinoisArkansas e o Atchafalaya. A bacia hidrográfica do rio Mississipi drena uma área total de 3,2 milhões de km², onde se incluem 31 Estados americanos e 2 províncias canadenses.  

A hidrovia Mississipi-Missouri-Ohio é considerada a maior do mundo em tráfego de cargas – somente no rio Mississipi, a movimentação anual de cargas é da ordem de 425 milhões de toneladas. Para efeito de comparação, esse volume equivale a quase quatro vezes o volume total de cargas do Porto de Santos, o maior do Brasil (120 milhões de toneladas em 2017). O transporte de cargas por sistemas hidroviários representa 43% do volume total movimentado nos portos americanos e corresponde a 1,5 bilhão de toneladas anuais (dados de 2014)

Em 1811 foi realizada a primeira viagem de um barco a vapor entre os rios Ohio e Mississipi, chegando até a cidade de New Orleans. A navegação a vapor, especialmente para o transporte de passageiros, com seus típicos navios gaiola, viveu seu auge entre as décadas de 1830 e 1870, quando começou a sofrer com a forte concorrência das ferrovias. O transporte de cargas, entretanto, nunca foi abandonado e só fez aumentar ao longo do tempo, exigindo cada vez a realização de obras de infraestrutura para a melhoria da navegação e serviços de dragagem e manutenção dos canais nos rios. 

Na hidrovia Mississipi-Missouri-Ohio é comum o tráfego de comboios entre 12 e 15 barcaças, com uma capacidade total de 20 mil toneladas, que sobem os rios carregando petróleo e outros combustíveis produzidos nos Estados do Texas e carvão do Kentucky e de Illinois; na viagem de volta transportam produtos siderúrgicos e grãos. Dentro deste grande complexo hidroviário, merece destaque o canal que liga o rio Tennessee, afluente do rio Mississipi, ao rio Tombigbee, mais conhecido pelo apelido “TennTom. Esse canal, que tem 377 km de extensão, foi construído para viabilizar o transporte do carvão produzido no interior do Estado de Ohio na direção do Golfo do México e encurtou o percurso em mais de 500 km, o que demonstra a importância da navegação fluvial para o transporte de cargas. 

De acordo com dados da American Waterways Operators, associação que reúne as empresas operadoras de rebocadores e barcaças nos Estados Unidos, 81 cidades do país com população acima de 100 mil habitantes estão localizadas próximas de rios e canais servidos por navegação de carga. Cerca de 10% de toda a carga comercial transportada no país é feita através deste modal de transporte, com um total de 1.200 empresas especializadas neste tipo de operação. Existem cerca de 40 mil km de vias navegáveis em todo o território americano, onde se incluem 608 barragens e 257 eclusas. A administração das hidrovias do país está a cargo do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, que emprega mais de 33 mil funcionários na operação de todo o sistema. 

O envolvimento do Corpo de Engenheiros do Exército americano com a navegação fluvial data do início do século XIX, quando foi convocado para trabalhar na remoção de bancos de areia no rio Mississipi. Além desse trabalho, que começou em 1829, o Corpo de Engenheiros também passou a realizar trabalhos de implosão de rochas, escavação de canais, construção de represas e eclusas, obras que tornaram a navegação no rio Mississipi cada vez mais segura e eficiente. Merece destaque também a construção do Canal de IllinoisMichigan, concluído pelo Corpo de Engenheiros em 1848, que permitiu a interligação entre a bacia hidrográfica do rio Mississipi e os Grandes Lagos. Esse canal passou a permitir a navegação de barcaças de cargas vindas de toda a região dos Grandes Lagos e do rio São Lourenço na direção de New Orleans e do Golfo do México ao Sul, através do rio Mississipi

A economia dos Estados Unidos sempre foi altamente complexa, com regiões do país se especializando em tipos diferentes de produtos e serviços – a integração econômica entre estas diferentes regiões coube, em grande parte, ao gigantesco sistema de vias de navegação fluvial criado em todo o país, em especial, na região central – a hidrovia Mississipi-Missouri-Ohio. Siderurgia e indústrias dos segmentos de metalmecânica no Nordeste; produção de cereais na região Centro-Norte, especialmente o trigo e o milho (destaque para a região conhecida como corn belt – cinturão do milho); petróleo e derivados no Texas; carvão nos Estados Kentucky, Illinois e Ohio; algodão nos Estados do Sul, além dos mais diferentes tipos de produtos de consumo produzidos em fábricas espalhadas por todo o país.

Os baixos custos de transporte e a alta eficiência do modal contribuiu de forma fundamental para a formação do grande mercado consumidor interno do país, que é hoje a grande mola propulsora da economia dos Estados Unidos. As hidrovias também dão uma importante contribuição na exportação de produtos agrícolas e manufaturados, que seguem de regiões interioranas ao encontro dos principais portos marítimos. 

O que chama a atenção no sistema hidroviário dos Estados Unidos, um país que sempre pregou a livre inciativa e mínima intervenção do Estado na economia, é a participação e o trabalho do Corpo de Engenheiros do Exército americano na construção, manutenção e operação de canais e rios utilizados para navegação fluvial, algo que, indiretamente, colocou a “mão” do Estado a serviço da economia. No caso particular dos rios Mississipi e Missouri, muitas das obras tinham como objetivo principal o controle das violentas enchentes que, frequentemente, assolavam toda a região central do país e o seu controle foi considerado uma questão de segurança nacional (por isso o envolvimento do Exército americano). Iniciadas em 1829 e concluídas na sua maior parte na década de 1930, as obras contra as enchentes cumpriram a maior parte dos objetivos propostos; porém, o grande mérito do projeto, foi a inclusão de sistemas de eclusas e de comportadas nas obras, visando a ampliação cada vez maior das vias navegáveis do país. Isso é o que se chama de visão de longo prazo. 

Deixo uma pergunta: quantas das barragens de usinas hidrelétricas de nosso país (e olhem que são muitas) foram construídas já prevendo a inclusão de eclusas com vistas a garantir a navegação nos rios? 

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