BOTO DO ARAGUAIA: UMA ESPÉCIE RECÉM DESCOBERTA E JÁ EM RISCO DE EXTINÇÃO

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O processo de destruição contínua do rio Araguaia, sobre o qual comentamos nas duas postagens anteriores – A implacável seca na Ilha do Bananal e Araguaia: um rio que poderá desaparecer em 40 anos, está afetando milhares de pessoas, em diferentes cidades nos Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Pará. O grau de degradação do rio, que se mostra com intensidade devastadora no período da seca, está intimamente ligado ao avanço das fronteiras agrícolas no Bioma Cerrado. Poderão até surgir evidências da participação de fatores climáticos como a redução do volume de chuvas, aumento da temperatura regional, mudança do regime dos ventos, influências do El Niño e La Niña, entre outros, porém, as ações antrópicas, aquelas criadas pelas mãos e obras dos homens, continuarão sendo as que mais contribuíram para a catástrofe ambiental que assistimos no rio Araguaia.

Analisando a situação do Araguaia, me deparei com um fato extremamente preocupante e sobre o qual não poderia deixar de tecer um comentário: os botos do Araguaia (Inia araguaiensis), uma espécie que há bem pouco tempo passou a ser classificada como uma espécie diferente dos botos da bacia Amazônica, corre sérios riscos de extinção em virtude de todo o “conjunto da obra” que encontramos neste rio.

Em 2014, um estudo conjunto de pesquisadores da UFAM – Universidade Federal do Amazonas, do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Universidade de Dundee da Escócia, comprovou, através de uma série de análises genéticas, que os botos do rio Araguaia se separaram dos botos do restante da bacia Amazônica entre um e dois milhões de anos atrás, passando a constituir uma espécie diferente. Segundos os estudos, as corredeiras existentes na região do Baixo Rio Tocantins, atualmente submersas em grande parte pelo lago formado pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Sul do Estado do Pará, isolou uma população de botos que, com o passar do tempo, desenvolveu características físicas e genéticas diferentes. Algumas destas diferenças são um crânio mais largo e a presença de um número menor de dentes em comparação a outras espécies de boto do gênero Inia.

A descoberta de “novas” espécies de animais conhecidos não é uma novidade para a ciência. Dois exemplos muito recentes envolvem as girafas e os elefantes africanos, dois dos animais mais conhecidos de todo o mundo. Até bem poucos anos atrás se acreditava que havia uma única espécie de cada animal em todo o continente africano. Com o desenvolvimento das técnicas para o sequenciamento cada vez mais preciso do DNA, a identificação genética de todos os seres vivos, os pesquisadores começaram a perceber diferenças entre as girafas e os elefantes de diferentes regiões da África. Graças a estes novos estudos, hoje já é possível afirmar que existem, pelo menos, duas espécies diferentes de girafas e duas espécies de elefantes africanos – com o desenvolvimento de novas tecnologias e novos estudos, talvez estas famílias venham crescer ainda mais. No caso dos botos, havia uma percepção generalizada que todos os animais dos diferentes rios da bacia Amazônica, na qual os rios Tocantins e Araguaia estão contidos, pertenciam às mesmas espécies – em águas da Amazônia brasileira, as principais espécies são o boto cinza (Sotalia guianensis), o boto tucuxi (Sotalia fluviatilis) e o boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis). A constatação que o boto do Araguaia é na verdade uma espécie diferente é fundamental para um esforço de preservação ainda maior.

De acordo com as estimativas dos pesquisadores, a população de botos do Araguaia está entre 900 e 1.500 animais. Essa população se divide entre os rios Tocantins e Araguaia, sendo que o grupo que vive nas águas do rio Tocantins é a que se encontra em um estado mais crítico. A construção de diversas barragens dividiu as populações em pequenos grupos sem comunicação, condição que leva ao enfraquecimento genético dos animais – em populações isoladas, tanto humanas quanto de animais, passa a ocorrer o cruzamento entre indivíduos da mesma família, o que reduz a diversidade genética dos indivíduos e aumenta os risco de extinção do grupo. De acordo com o Instituto Araguaia, entidade que se dedica à conservação e preservação da biodiversidade e processos ecológicos do rio Araguaia, existe um grupo de botos vermelhos, mais conhecidos como boto-cor-de-rosa, isolado no trecho entre as Usinas Hidrelétricas de Serra Mesa e Canabrava em Goiás. Sem a intervenção humana, o isolamento genético deste grupo poderá, a longo prazo, resultar no desaparecimento da espécie neste trecho.

Além do isolamento dos grupos, da redução cada vez maior dos caudais dos rios, do açoreamento e da destruição dos seus habitats, os botos do Araguaia ainda têm de enfrentar um inimigo furioso: os pescadores. Os botos de todas as espécies são animais muito inteligentes e oportunistas – eles nunca perdem a chance de fazer um “lanche rápido” sempre que a oportunidade aparece. E costumam fazer isso quando percebem que as redes dos pescadores está cheia de peixes. Os pescadores, é claro, não estão dispostos a dividir o fruto do seu trabalho, cada vez mais difícil por causa da degradação ambiental dos rios, e fazem de tudo para espantar os botos – muitas vezes a bala ou jogando iscas envenenadas.

Em 2010, eu participei de uma pescaria no rio Jamari, um dos afluentes do rio Madeira em Rondônia, num trecho exatamente abaixo da barragem da Usina Hidrelétrica de Samuel. Enquanto tentava fisgar algum peixe (capturei um único bagre), passei a observar grupos de botos cinza e cor-de-rosa que nadavam ao redor do barco – fiquei pensando nos problemas que a construção daquela barragem bem na minha frente trouxe para as espécies. Como é comum em outras hidrelétricas, a de Samuel não possui nenhum dispositivo que permita a “migração” de peixes, cetáceos, répteis ou qualquer outro ser vivo de um lado para o outro da barragem. Conversando com o “piloteiro” do barco, nativo e morador das margens do rio, fiquei sabendo que a partir da construção da Usina Hidrelétrica de Samuel foram inúmeras as espécies de peixes que simplesmente “desapareceram” das águas do rio Jamari. É esse mesmo processo de fragmentação dos habitats aquáticos que ameaça, junto é claro com outros problemas de degradação das águas, a sobrevivência do recém “descoberto” boto do rio Araguaia.

Essa sina dos botos do Araguaia e da Amazônia não é uma exclusividade dos delfinídeos de água doce do Brasil – todas as espécies de “golfinhos” de rio do mundo estão sofrendo por causa da poluição e da destruição dos habitats. Em 2006, o baiji ou boto do rio Yangtzé (rio Azul) na China foi declarado extinto, vitima da sobre pesca, da construção de barragens e, sobretudo, por causa da poluição – 60% dos rios da China estão em condições extremas de poluição: os rios mais poluídos do Brasil, se comparados aos rios chineses, podem ser considerados “verdadeiros regatos das montanhas”.

Até quando nós vamos continuar tolerando este tipo de agressão?

Veja também:

OS GOLFINHOS E A POLUIÇÃO DOS RIOS

7 Comments

  1. […] Boto-do-rio-Araguaia (Inia araguaiensis): Durante muito tempo se acreditou que os botos que viviam nas águas dos rios Araguaia e Tocantins eram da mesma espécie  daqueles animais encontrados na bacia do Rio Amazonas. Em pesquisas bastante recentes, os cientistas descobriram que, na realidade, trata-se de uma outra espécie, com diferenças no tamanho e peso, no formato do crânio e no número de dentes. Apesar de recém descoberta pela ciência, a espécie já está na lista dos animais ameaçados de extinção.  […]

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