O PROJETO MANUELZÃO E A RECUPERAÇÃO DO RIO DAS VELHAS, OU ERA UMA VEZ EM CORDISBURGO

Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa (1908-1967) era mineiro da cidade de Cordisburgo. Foi médico, diplomata, contista, novelista e escritor – considerado um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Uma característica marcante de Guimarães Rosa era o seu profundo conhecimento de línguas – em suas próprias palavras: “Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras.”

Foi talvez por causa deste imenso conhecimento linguístico que Guimarães Rosa aprendeu, como nenhum outro escritor, a falar e a escrever a língua do povo dos sertões mineiros. No início da década de 1950, ele organizou uma boiada entre a Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, um distrito de Três Marias (MG), e uma fazenda em Araçaí (MG). O objetivo do escritor era conhecer de perto os costumes e a vida do povo simples do sertão, registrando lugares, palavras, expressões e personagens típicos. A viagem durou 10 dias e serviu como base para a criação de dois dos mais importantes livros de nossa literatura – Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, publicados em 1956. Entre inúmeros vaqueiros que conheceu nesta aventura, um foi marcante e acabou imortalizado em sua obra: Manuelzão, cujo nome real era Manuel Nardi. Inspirado no vaqueiro, Guimarães Rosa escreveu o conto Uma Estória de Amor, que faz parte do livro Corpo de Baile – posteriormente, esse livro foi desmembrado em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Segundo alguns estudiosos, o personagem Riobaldo foi baseado no arquétipo de Manuelzão.

O Projeto Manuelzão foi criado por professores da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais em 1997; o nome do projeto homenageia o homem e o personagem. O projeto está ligado a uma das disciplinas obrigatórias do curso de Medicina – Internato em Saúde Coletiva, mais conhecido como “Internato Rural”. Os estudantes passam um período de três meses em pequenas cidades e municípios do interior de Minas Gerais, desenvolvendo atividades de medicina preventiva e social, algo muito parecido com o programa Saúde da Família, adotado por algumas prefeituras. Durante este “Internato”, professores e alunos passaram a perceber que só medicar a população não era o suficiente – era preciso combater as causas das doenças, ou seja, era preciso trabalhar por melhorias no saneamento básico e nas condições ambientais. Só assim seria possível promover a qualidade de vida destas populações.

A recuperação da bacia hidrográfica do rio das Velhas foi escolhida como a bandeira principal do projeto. Dentro da moderna visão da gestão ambiental a partir da bacia hidrográfica, os professores e alunos perceberam que o estudo desta região possibilita uma análise sistêmica e integrada de todos os problemas, assim como apontar quais são as intervenções necessárias. O projeto foi pensado para funcionar em parceria com os municípios compreendidos na bacia hidrográfica, com o Governo do Estado e com a sociedade, além de muitos outros parceiros. O projeto é estruturado na forma de núcleos, conhecidos como Núcleos Manuelzão, espalhados por toda da bacia hidrográfica. Nestes Núcleos, a sociedade civil é chamada para debater com o poder público e com os demais usuários das águas as questões ambientais locais, podendo contar com a parceria e orientação dos especialistas do Projeto Manuelzão.

O Projeto também desenvolve importantes atividades no campo da pesquisa, onde professores, colaboradores e estagiários trabalham no Núcleo Transdisciplinar e Transinstitucional pela Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – NuVelhas. As pesquisas se desenvolvem em diferentes campos como o biomonitoramento, geoprocessamento e a recuperação de matas ciliares. Contando como uma parceria com o curso de Comunicação Social da UFMG, o Projeto lançou o Jornal Manuelzão, que cresceu e mais tarde passou a ser a Revista Manuelzão.

Em 2003, o Projeto Manuelzão organizou uma expedição que percorreu toda a extensão do rio das Velhas, desde as nascentes na Cachoeira das Andorinhas em Ouro Preto até a foz do rio em Barra do Guaicuí. A expedição durou 29 dias e foi recebida com festa pelas comunidades, escolas e membros dos Núcleos Manuelzão. Os relatos anotados no “diário de bordo” dos expedicionários foi transformado em livro com dois volumes – Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais. O primeiro volume do livro detalha os acontecimentos da expedição e o segundo volume, mais técnico, forma uma enciclopédia sobre a bacia hidrográfica. A partir desta expedição de 2003 foi desenvolvida uma proposta, excessivamente otimista na minha opinião, para a revitalização do rio das Velhas até 2010.

A proposta recebeu o simpático nome de Meta 2010: navegar, pescar e nadar no rio das Velhas. O foco da proposta é a região do Alto rio das Velhas, a mais poluída da bacia hidrográfica, em especial o trecho entre a foz do rio Itabirito e o ribeirão Jequitibá. Como já tratado em postagem anterior, este trecho do rio sofre imensamente com os resíduos da mineração e com os lançamentos de grandes volumes de esgotos domésticos e industriais. As ações propostas incluem obras de infraestrutura de saneamento básico, educação socioambiental, mobilização social e participação popular, além de trabalhos para a recuperação de trechos da vegetação nativa e das matas ciliares.

Em 2005 foi realizado o Festivelhas Manuelzão: arte e transformação, em Morro Garça, evento que contou com a presença de artistas de todas as regiões da bacia hidrográfica. A partir do sucesso deste evento, foi realizado em 2007 o Festivelhas Jequitibá: arte e cultura na capital mineira do folclore. Em 2009, o Festivelhas foi realizado simultaneamente em maio e junho em Ouro Preto, Santa Luzia, Curvelo, Barra do Guaicuí e Belo Horizonte, como parte da programação da Expedição pelo Velhas 2009: encontros de um povo com sua bacia.

Ao longo de mais de 80 postagens nos últimos quatro meses, apresentei a lista dos dez rios mais poluídos do Brasil, mostrando os problemas e os desafios enfrentados pelas populações que vivem ao longo de suas margens e que dependem das suas águas para o abastecimento de casas e indústrias, irrigação, e também, para diluir e transportar os esgotos e rejeitos industriais das cidades e povoados. Nesta última postagem desta série, quis trazer uma mensagem diferente: ao invés de ficar reclamando dos problemas do rio, nada melhor do que arregaçar as mangas e passar a lutar pela sua recuperação, como tem feito o Projeto Manuelzão.

Concluindo, deixo as palavras de outro grande escritor mineiro – Carlos Drummond de Andrade, através das linhas iniciais de um poema onde fala de “Um chamado João”, numa homenagem ao imortal conterrâneo das Minas Gerais:

“João era fabulista?
fabuloso?
fábula?

Que vivam para sempre – João, Carlos e o rio das Velhas…

6 Comments

  1. […] Além da intensa devastação ambiental, essas carvoarias faziam e ainda fazem uso de mão de obra infantil (vide foto), o que só aumenta a gravidade do crime ambiental. Estima-se que 90% da Mata Atlântica no Estado de Minas Gerais desapareceu, grande parte “queimada” nos fornos das carvoarias e altos-fornos das siderúrgicas. Outro tipo de vegetação tipicamente mineira que sofreu forte devastação foram as veredas, cenário de muitos contos do magnífico Guimarães Rosa. […]

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