A DIÁSPORA BOVINA, OU A DESCOBERTA DO VALE DO RIO SÃO FRANCISCO

Gado

Para conseguirmos entender corretamente o que significa ter um rio como o São Francisco em nosso país, será importante entender primeiro sua relevância dentro de um contexto histórico e social, para depois analisarmos sua importância dentro de um contexto ambiental e econômico. Para fazermos isso, é necessário voltar ao período do início da colonização do Brasil, quando a cultura da cana e a produção do açúcar moviam a nossa economia. Em 2012, eu publiquei um livro – A República dos Gafanhotos, onde trato longamente deste assunto. Vou fazer um resumo do resumo para mostrar a importância do Rio São Francisco nestes primeiros tempos.

Imagine, de um lado, uma gigantesca plantação de cana de açúcar, com milhões de brotos suculentos e adocicados; do outro lado, uma enorme boiada, com milhares e milhares de cabeças de bois e vacas esfomeados – na primeira chance que aparecer, esta boiada vai invadir a plantação de cana e devorar toda e qualquer deliciosa folha verde que encontrar pela frente (imagine uma nuvem de gafanhotos atacando a plantação). Foi justamente para se evitar tais embates entre bovinos e canaviais que, desde meados do século XVI, bem no início da colonização a partir do litoral brasileiro, os senhores da terra criaram normas e regras que forçaram os criadores a se embrenharem sertão a dentro com suas boiadas. O objetivo desse ordenamento era se manter as boiadas o mais longe possível dos domínios da cana de açúcar, o que forçou criadores e bois a buscarem pastagens e cursos de água no interior da região Nordeste. Eu chamei esse processo de diáspora (dispersão) bovina em um dos capítulos do livro, nome que repeti neste post.

Expulsos do litoral, os criadores de gado não tardaram a descobrir o Vale do Rio São Francisco, onde encontraram um curso de águas perenes e espaço de sobra para se estabelecer e ver as boiadas se multiplicarem. Ao longo das margens do Velho Chico foram surgindo, uma após outra, as grandes fazendas de criação. O antropólogo Darcy Ribeiro, em seu clássico O Povo Brasileiro, descreveu assim esse processo:

“O gado trazido pelos portugueses das ilhas de Cabo Verde vinha já, provavelmente, aclimatado para a criação extensiva, sem estabulação, em que os próprios animais procuram suas aguadas e seu alimento. Os primeiros lotes instalaram-se no agreste pernambucano e na orla do recôncavo baiano, suficientemente distanciados dos engenhos para não estragar os canaviais. Daí se multiplicaram e dispersaram em currais, ao longo dos rios permanentes, formaram as ribeiras pastoris. Ao fim do século XVI, os criadores baianos e pernambucanos se encontravam já nos sertões do Rio São Francisco, prosseguindo ao longo dele rumo ao sul e para além, rumo às terras do Piauí e do Maranhão. Seus rebanhos somariam então cerca de 700 mil cabeças, que dobrariam no século seguinte.”

Esse crescimento populacional de bichos e de gentes, cada vez mais desordenado, foi se espalhando por todo o sertão, se distanciando cada vez mais do litoral. Grandes contingentes de pessoas e animais – bovinos, caprinos e ovinos, iam se organizando em currais cada vez mais espaçados; ao longo dos caminhos das boiadas foram se organizando pequenos núcleos populacionais, onde pequenas lavouras de subsistência produziam mandioca e farinha, milho, feijão e outros gêneros para alimentação dos locais e também para os sertanejos errantes que tocavam suas boiadas pelo sertão. Homens e boiadas acabaram crescendo muito além da capacidade de carga do meio ambiente.

Os primeiros colonos evitavam os chamados caatingais. Porém, com o crescimento das populações e a necessidade de pastagens para os gados bovinos e caprinos, foram se acomodando e incorporando essas áreas nas suas produções. Entre uma área de caatinga e outra há sempre uma pequena extensão de campos. Para ampliar as extensões destes campos, utilizou-se indiscriminadamente do poder do fogo das queimadas, consumindo as árvores ressequidas da caatinga e criando espaços artificiais para o crescimento dos campos. Os animais foram se adaptando ao consumo de várias espécies de vegetais que cresciam nesses campos e caatingais, especialmente os bodes e as cabras.

O grande mercado consumidor para os bois criados no sertão eram os maiores centros de população, isto é, as capitais da Bahia e Pernambuco, além das pequenas vilas que pouco a pouco iam se desenvolvendo por todo o litoral açucareiro. A partir do século XVIII, com descoberta das minas de ouro na região das Geraes e o grande afluxo de gentes para os trabalhos de pesquisa, mineração e transporte do metal rumo ao litoral, essas boiadas se transformariam numa importante fonte de alimentação e seguiriam o curso do rio São Francisco a caminho dos sertões das Minas Gerais.

Esse avanço de gados e gentes pelos sertões e margens do Rio São Francisco não foi tão simples quanto parece: centenas de etnias indígenas já ocupavam essas terras e os embates foram violentos.

Falaremos disto no próximo post.

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31 Comments

  1. […] Aqui no Brasil, as condições naturais do território e a nossa própria história favoreceram a criação de bois e o consumo de sua carne. Os primeiros animais chegaram ao país nos primeiros anos da colonização, nas mesmas embarcações que trouxeram as primeiras mudas de cana-de-açúcar. Inicialmente, os fortes bois tinham a função de arar a terra e puxar as carroças com canas e lenhas até as unidades de produção de açúcar dos engenhos. Somente depois, quando surgiram os conflitos entre os plantadores de cana e os criadores de gado (os animais invadiam as plantações e comiam os doces brotos de cana-de-açúcar), é que as boiadas foram expulsas do litoral açucareiro do Nordeste e ganharam os sertões do Brasil.  […]

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  2. […] Uma das cidades mais importantes das margens do rio de Contas e cuja história nos permite entender a degradação ambiental do corpo d’água é Jequié, localizada na região de encontro dos biomas Mata Atlântica e Semiárido Nordestino. Como aconteceu em todo o Semiárido Nordestino, a Região de Jequié passou a abrigar grandes sesmarias de terras a partir dos séculos XVII e XVIII, onde a pecuária era a atividade principal. […]

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