À coisa de uns vinte e cinco anos atrás, o dono de uma grande construtora, onde eu viria a trabalhar em tempos mais recentes, por muito pouco não viu seus dias encerrados em um grave desastre aéreo. Em uma viagem a trabalho num dos jatinhos da empresa (grandes construtoras costumam ter jatos particulares para uso em “serviço”), a poucos minutos do pouso em Belém, a aeronave sofreu um forte impacto seguido da explosão de uma das turbinas. Graças à perícia e à grande experiência do piloto, segundo relato que ouvi anos depois do próprio empreiteiro, foi possível compensar a potência do avião acelerando o segundo motor e fazer um pouso de emergência no aeroporto. Semanas depois do acidente, o relatório oficial das autoridades aeronáuticas confirmou a suspeita inicial do piloto: a turbina sugou um dos muitos urubus que planam nas proximidades do aeroporto, provocando assim a explosão da turbina. O número de acidentes aeronáuticos, diga-se de passagem, raramente fatais, envolvendo impactos de urubus contra a fuselagem ou contra as turbinas de aviões em voo cresceu muito nos últimos anos, particularmente em países “em desenvolvimento” como o nosso – a concentração de renda e muita gente vivendo do lixo são características comuns entre esses países.
Aparentemente, parece existir uma distância astronômica entre os milionários e o povo do lixo:
O primeiro grupo vive sempre nos melhores bairros das cidades, em casas ou edifícios projetados por renomados arquitetos e construídos por empresas especializadas em imóveis residenciais. O interior sempre agrega sempre o que há de mais modernos em mobiliário, eletrodomésticos e eletrônicos, com projetos de design de interiores assinados pelos grandes nomes do mercado. Para esse grupo, tudo o que há de bom e de melhor!
Para o povo que vive e que trabalha nos lixões, tudo também: todos os resíduos gerados na cidade – inclusive a grande quantidade gerada diariamente pela classe milionária; resíduos hospitalares descartados de maneira irregular em grande parte dos municípios, incluindo-se os perigosos resíduos perfuro cortantes; todas as sobras da construção civil, inclusive madeiras com pregos e partes de peças de concreto armado com pontas de aço enferrujadas; as gigantescas nuvens de insetos que se reproduzem e vivem dentro dos lixões, com destaque para todas as espécies de mosquitos – inclusive ele, o sempre presente Aedes aegypti. As casas destes infelizes, via de regra, é sempre um apanhado com um pouco de tudo que essas pessoas encontram descartadas por ali, arranjado de tal forma que crie alguma proteção contra a chuva, o sol e o frio.
Porém, a aparente distância entre esses dois mundos, pelo menos em sentido figurado, não é tão grande assim: qualquer milionário que se preze ou é proprietário ou costuma fretar jatinhos executivos para as suas viagens a trabalho ou lazer. O mercado de jatos executivos de todos os portes é um dos que mais cresce em todo o mundo globalizado. Políticos também adoram um jatinho, principalmente quando a “conta do posto de gasolina” é paga por terceiros, especialmente as grandes empreiteiras. E o mesmo céu usado pelos jatinhos em seus voos é habitat dos urubus, ave de grande porte conhecida por sua inigualável capacidade de usar as correntes de ar quente, as térmicas, para planar preguiçosamente no azul infinito.
Os incontáveis lixões que cercam os centros urbanos se transformaram em áreas de alimentação para os urubus, que com comida em abundância e espaço de sobra para a construção dos ninhos, se multiplicaram sem controle e são vistos às centenas no horizonte e céus das cidades. Criminosamente, muitos destes lixões foram criados nas proximidades das cabeceiras de pistas dos aeroportos – as operações de pouso e decolagem ganharam um componente de risco extra, risco aumentado significativamente para aviões menores como os jatinhos executivos. Um estudo sobre este problema usou dados oficiais minuciosos da Força Aérea Brasileira e encontrou 134 colisões entre nossas aeronaves militares e urubus entre janeiro de 2008 e agosto de 2009, sendo que 98% das colisões ocorreram nas proximidades ou dentro das áreas das pistas de pouso. Na aviação civil, dados do CENIPA – Centro de Investigação de Acidentes Aeronáuticos, indicam a ocorrência, entre 2007 e 2008, de 659 casos – as autoridades estimam que apenas 25% das colisões foram registradas. O problema é seríssimo.
Infelizmente, todos nós pobres mortais que não somos milionários e que, eventualmente, viajamos de avião a trabalho ou nas nossas merecidas férias, também corremos riscos. Só que, ao contrário de muitos milionários, nós não podemos fazer quase nada para acabar com os lixões.
Resta-nos rezar para os urubus voarem bem longe de nossas cabeças ou que alguma autoridade resolva em definitivo os problemas desses lixões.
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